Hoje fui marcado em uma postagem de uma
pessoa que clama haver sim nos clássicos indicações dos vargas enquanto mapas divisionais, algo que venho refutando já a algum tempo por meio de algumas postagens (vide esta e esta). O mais engraçado é que a pessoa em
questão só citou o Bṛhat Parāśara horā, texto que só é autoridade entre
astrólogos desinformados, pois todos estão carecas de saber que esse texto além
de diferir do original está cheio de interpolações, visto ser fruto de uma
tentativa de recompor o texto datado de meados do século VI-VIII e que era
dividido em dois khandas: pūrva e uttarakhanda. Inclusive, quem tentou recompor o texto original do
BPHS foi um brāhmaṇa que viveu no
século XIX. A partir daí algumas traduções e comentários começaram a surgir,
dos quais o de Sitaram Jha ficou muito popular, embora esse só exista em hindi.
Em inglês há apenas duas traduções, as quais são mais recentes, uma de Girish
Chand Sharma e outra de R. Santhanam. Geralmente a tradução que as pessoas
acessam pela internet é a do R. Santhanam e a maior parte dos astrólogos de
hoje em dia usa essa versão como referência, a qual já possui alguns elementos
distintos da tradução de Sitaram Jha e outros astrólogos inacessíveis para
aqueles que não sabem hindi.
O que as pessoas em geral não sabem, no
entanto, é de que os paṇḍītas em jyotiṣa não usam o BPHS como referência
principal, mas apenas secundária, justamente por saberem dos problemas acima
citados sobre o mesmo. As verdadeiras referências do jyotiṣa são, em especial, quatro textos clássicos: Bṛhat jātaka de
Varāhamihira (séc. VI), Sārāvalī de Kalyāna (séc. X), Phaladīpikā de
Mantreśvara (séc. XIII ou XV) e Jātaka pārījāta de Vaidyanātha (séc. XV).
Nenhum paṇḍīta realmente versado toma
do BPHS como autoridade principal, pois para entender o BPHS os textos acima
mencionados é que são utilizados, pois em particular a Phaladīpikā é um texto de Parāśarī jyotiṣa e que apresenta os
princípios de Parāśara livre das interpolações modernas de Jaimini jyotiṣa.
Dada essa introdução, agora podemos proceder para
o verdadeiro intuito desse texto que é demonstrar por meio de sólidas referências acadêmicas como a interpretação dos ślokas citados no artigo em que fui
marcado é completamente incorreta, pois a pessoa em questão, por meio de apenas
quatro ślokas mal
interpretados do BPHS, tenta derrubar a ideia clássica - que ela de maneira cômica chama de
moderna - de que os vargas devem ser
usados apenas como divisões de um signo e não como “mapas divisionais”.
A pessoa em questão afirma que Parāśara nos
pede para olhar o mapa navāṁśa, com
suas conjunções, dṛṣṭis e casas,
quando em momento algum Parāśara se refere a coisas do tipo. Nesses quatro ślokas, dois pedem apenas que olhemos o navāṁśa ocupado pelo lagna e pela cúspide da sete, algo
comumente utilizado nos textos clássicos, inclusive nos quatro principais que
mencionei mais acima, enquanto os outros dois ślokas
tratam da técnica rāśi-tulya-navāṁśa,
onde se transpõem o navāṁśa ocupado
por um graha sobre o mapa natal para
se obter uma informação adicional dos seus resultados. No caso, para que fique
bem claro no que consiste a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa
cito logo abaixo três exemplos:
(1) Suponhamos que alguém cujo lagna é áries tenha Maṅgala (Mar), o regente do lagna e da oito, em touro, no terceiro navāṁśa (entre 6º40’ e 10º00’ de touro) do signo, isso é, em peixes. Como peixes é a doze a partir do lagna áries, Maṅgala estaria em vyayāṁśa, ou seja, em um navāṁśa que equivale a doze (vyāya) do mapa natal.
(2) Agora imaginem que alguém cujo lagna é gêmeos tenha Śani (Sat), o
regente da oito e da nove, em libra, mas entre 26º40’ e 30º’00 do signo. Nesse
caso, Śani estaria ocupando o navāṁśa
de gêmeos, o que transpondo para o mapa natal equivale a ter Śani no lagna, ou seja, em lagnāṁśa – navāṁśa
correspondente ao lagna.
(3) Por fim, vamos imaginar que um indivíduo
possua o lagna em sagitário, sendo
que Śukra (Vên), o regente da seis e da onze, ocupa peixes, mas entre 00º00’ e
3º20’ do signo. Nessa situação Śukra estaria ocupando o navāṁśa de câncer, que no mapa natal corresponde a oito, ou seja,
Śukra estaria em nidhanāṁśa ou randhrāṁśa – navāṁśa corresponde a oito do mapa natal.
Creio que com esses três exemplos ficou
bastante claro como funciona a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa.
Quem deseja saber mais a respeito da técnica, recomendo que estude o artigo “Rasi
& Navamsa: Interchanging identicalness” presente no livro “Predicting
through Navamsa & Nadi astrology”, escrito por Chandulal S. Patel, um dos
maiores astrólogos e pesquisadores contemporâneos, que por sinal já partiu a
alguns anos deixando para nós um legado brilhante e extremamente acadêmico por meio de
seus livros, reconhecidos por qualquer estudante dedicado do jyotiṣa.
Em seu artigo acima mencionado, Chandulal S.
Patel mostra como a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa
funciona. Para isso ele cita dois textos onde ela foi extensivamente
abordada: Deva keralam (a.k.a., Chandra kāla nāḍi) e Dhruva nāḍi, embora ele
também mostre como até mesmo o Jātaka pārījāta tem alguns exemplos dessa
técnica citados no mesmo, sendo o JP um dos quatro textos principais de jyotiṣa que menciono no início desse
artigo. Curiosamente, em momento algum encontramos
nos textos de Chandulal S. Patel qualquer menção ao navāṁśa enquanto um mapa divisional. Não só, nem sequer exemplos de
leituras a partir dessa perspectiva são encontradas em seus textos. Isso é no
mínimo muito curioso, uma vez que Chandulal S. Patel era um erudito versado em
incontáveis textos clássicos, inclusive em diversos nāḍi-granthas que sequer foram traduzidos para o inglês. Ele até
mesmo diz que se coletássemos todos os ślokas
clássicos sobre o navāṁśa
presentes nos livros de Mīnarāja, Sphujidvaja, Varāhamihira, Pṛthuyaśas,
Kalyāna, Harji, Vaidyanātha, Guṇakāra, Mantreśvara, Balabhadra, Dhuṇḍirāja,
Kamalakāra e outras autoridades do jyotiṣa,
teríamos algo entre 2000 ou mais ślokas,
os quais ele minuciosamente estudou e com isso escreveu seu longo texto sobre
como utilizar o navāṁśa. Mais
interessante ainda é notarmos que em momento algum ele cita o BPHS no seu
livro, pois sendo um erudito, ele sabia muito bem que esse não era um texto tão
confiável. Só hoje em dia as pessoas usam do BPHS para tudo, até para entender
Jaimini, o que é lastimável, como já falei em um artigo passado sobre Jaimini jyotiṣa.
Mas bem, agora vamos falar dos quatro ślokas citados pela pessoa que desafia a
ideia de que vargas não são mapas
divisionais e de que essa é apenas mais uma invenção moderna de astrólogos que
querem criar uma nova astrologia, como ela pontua em seu artigo.
ŚLOKAS
“Se no nascimento o lagna for áries, touro ou leão e Śani (Sat) ou Maṅgala (Mar) o ocupar, a criança nascerá com o cordão umbilical enrolado em um de seus membros. No caso, o membro correspondente será aquele indicado pelo rāśi ou navāṁśa do lagna. – BPHS, 14.08”
“Se no nascimento o lagna for áries, touro ou leão e Śani (Sat) ou Maṅgala (Mar) o ocupar, a criança nascerá com o cordão umbilical enrolado em um de seus membros. No caso, o membro correspondente será aquele indicado pelo rāśi ou navāṁśa do lagna. – BPHS, 14.08”
Comentário: o śloka acima é bastante claro, no entanto, para deixar ainda mais
claro vou enumerar as condições necessárias para que um indivíduo nasça com o
cordão umbilical enrolado em uma determinada parte do corpo:
1
– Śani ou Maṅgala devem ocupar o lagna,
o qual deve ser áries, touro ou leão.
2
– A parte do corpo que estará enrolada pelo cordão umbilical será representa ou
pelo rāśi (signo) que ocupa o lagna ou o navāṁśa do mesmo, ou seja, a porção de 3º20’ demarcada pelo grau do
lagna.
Agora,
imaginemos um exemplo: o indivíduo nasceu com Śani no lagna, sendo que o seu lagna
reside a 6º15’ de touro, o que corresponde ao segundo navāṁśa do signo, ou seja, a aquário. Isso significa que o
indivíduo em questão nasceu com o cordão umbilical enrolado ou no pescoço
(touro) ou no calcanhar (aquário).
No
comentário da pessoa que desafia minhas afirmações sobre os vargas não consistirem em mapas
divisionais, mas apenas divisões de um signo, é afirmado que no verso em
questão Parāśara se refere a olharmos o lagna
do mapa navāṁśa, como se existisse
algo como um mapa navāṁśa, com conjunções,
dṛṣṭis e casas. Bem, o verso acima é
bastante claro e não faz referência alguma a um mapa navāṁśa, como provei por meio da explicação acima, onde apenas o navāṁśa ocupado pelo lagna é observado, ou seja, uma subdivisão de um signo, sem considerar qualquer
tipo de mapa à parte.
“Se o senhor da oito estiver conjunto a Rāhu em um kendra (1, 4, 7 ou 10), ou koṇa (5 ou 9) a partir da oito, ocupando
randhrāṁśa, o indivíduo sofrerá com o inchaço de seus vasos sanguíneos,
desordens urinárias, etc., durante o 18º e 22º ano de sua vida. – BPHS, 19.25”
Comentário: nesse śloka Parāśara se refere a randhrāṁśa,
que no Dhruva nāḍī é chamado de nidhanāṁśa.
No caso, randhrāṁśa ou nidhanāṁśa corresponde ao navāṁśa equivalente ao oitavo rāśi do mapa natal. Por exemplo, se o lagna de alguém é áries e um graha ocupa áries, mas no seu
oitavo navāṁśa (23º20’ à 26º40’ do signo),
isso significa que o mesmo estará em escorpião, o equivalente a oitava casa do
mapa. Em outras palavras, tal graha estará
ocupando nidhanāṁśa/randhrāṁśa.
Em
momento algum Parāśara diz nesse verso que devemos construir um “mapa navāṁśa” e notar a
oito do mesmo. O nome dessa técnica é rāśi-tulya-navāṁśa,
que como disse mais acima, é muito popular em tratados como o Deva keralam
(a.k.a. Chandra kāla nāḍi) e Dhruva nāḍi, mas presente também no Jātaka
pārījāta em alguns poucos exemplos.
“O indivíduo obterá duas esposas se o senhor da sete estiver em nīcha (debilitação) ou em um krūra-rāśi (signo maléfico) conjunto a
um krūra-graha (maléfico), enquanto o
rāśi ou navāṁśa da sete pertence a um kliba-graha
(graha eunuco, no caso, Śani ou
Budha). – BPHS, 20.19”
Comentário: aqui Parāśara não fala sobre a
técnica rāśi-tulya-navāṁśa, mas
apenas sobre notar qual é o navāṁśa
indicado pela cúspide da sete. Por exemplo, se o lagna está a 8º25’ de leão, naturalmente a cúspide da sete também
estará situada a 8º25’, mas do signo de aquário, o que corresponde ao seu
terceiro navāṁśa, ou seja, sagitário.
No
śloka acima, Parāśara diz que, além
do senhor da sete estar debilitado ou em um krūra-rāśi
junto a um krūra-graha, o rāśi ou navāṁśa indicado pela cúspide da sete deve ser regida por Śani ou
Budha, ou seja, deve corresponder a gêmeos, virgem, capricórnio ou aquário.
Existe alguma necessidade de construir um “mapa navāṁśa”? Não, basta olhar o navāṁśa
da sete em si, algo muito comumente utilizado nos clássicos em geral para
determinar a natureza do esposo ou da esposa.
“Se o senhor da sete estiver na doze, enquanto o lagneśa ocupa dāraṁśa, o casamento se dará aos seus 23 ou 26 anos de idade. –
BPHS, 20.31”
Comentário: aqui Parāśara se refere ao
conceito de rāśi-tulya-navāṁśa mais
uma vez, assim como no segundo śloka citado.
Dāraṁśa se refere a “divisão da
esposa”, o que no Dhruva-nāḍi é referido como bharyāṁśa. No caso, dāraṁśa ou
bharyāṁśa seria um navāṁśa que corresponde ao rāśi indicado na sete do mapa natal. Por
exemplo: se a sete do lagna é libra e
um graha ocupa entre 0º00’ e 3º20’ de
gêmeos, libra ou aquário, ele cairá no navāṁśa
de libra, ou seja, estará em dārāṁśa ou
bharyāṁśa. Agora lhes pergunto: onde
entra aqui a questão de se construir um “mapa navāṁśa”?
CONCLUSÃO
Como
ficou claro, os quatro ślokas citados
acima - das centenas que a pessoa em questão clama haver no BPHS provando que vargas são mapas divisionais[1] - não falam em momento
algum sobre um “mapa divisional”, pois eles ou se referem a notar o navāṁśa ocupado pela cúspide do lagna/sete ou então se referem a técnica
de rāśi-tulya-navāṁśa, que por sinal
também foi usada pelos astrólogos helenísticos e medievais, mas valendo-se da dodekatemoria, que é equivalente ao dvādaśāmśa (a.k.a., D12) dos indianos.
Ou seja, tantos os astrólogos indianos quanto também os helenísticos e
medievais jamais usaram de “mapas divisionais”, pois todos eles sempre
consideraram as divisões dos signos como meras divisões de um signo. O mais
próximo que tais astrólogos chegaram do conceito de mapa divisional é o que
apresentei acima sob o nome de rāśi-tulya-navāṁśa,
a técnica de transposição, que no caso dos helenísticos e medievais, até onde
sei, não recebeu nenhum nome específico e não era aplicada em relação ao navāṁśa (exceto por Abū Ma’shar, que viajou a Índia, importou o navāṁśa, mas não voltou praticando "mapas divisionais", como fica mais do que provado em seus escritos), mas
sim em relação a dodekatemoria (a.k.a.
dvādaśāṁśa).
A ideia dos mapas divisionais é relativamente recente. Pode ser que tenha se originado com Sheshadri Iyer, um astrólogo do século passado, mas também é possível que seja um pouco mais velha que isso. Porém, o fato é que não se trata de uma teoria clássica, por mais que hoje em dia tenha se popularizado, o que para mim e também outros astrólogos com que tive o privilégio de aprender mais a respeito como Guru Rajesh Kotekal e Shanmukha Teli, principalmente, é apenas uma teoria moderna, para não falar que é apenas uma espécie de distorção do conceito clássico dos vargas.
A ideia dos mapas divisionais é relativamente recente. Pode ser que tenha se originado com Sheshadri Iyer, um astrólogo do século passado, mas também é possível que seja um pouco mais velha que isso. Porém, o fato é que não se trata de uma teoria clássica, por mais que hoje em dia tenha se popularizado, o que para mim e também outros astrólogos com que tive o privilégio de aprender mais a respeito como Guru Rajesh Kotekal e Shanmukha Teli, principalmente, é apenas uma teoria moderna, para não falar que é apenas uma espécie de distorção do conceito clássico dos vargas.
oṁ tat sat
[1] Não sei onde, pois tenho registrados em arquivos de texto todos os ślokas sobre os vargas de cerca de uma dezena de clássicos, incluindo o BPHS, mas nenhum deles fala sobre mapas
divisionais, ao invés disso tratam apenas sobre vargas,
ou seja, divisões de um signo.
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