sábado, 27 de julho de 2019

Refutando a presença de "mapas divisionais" na literatura clássica

Hoje fui marcado em uma postagem de uma pessoa que clama haver sim nos clássicos indicações dos vargas enquanto mapas divisionais, algo que venho refutando já a algum tempo por meio de algumas postagens (vide esta e esta). O mais engraçado é que a pessoa em questão só citou o Bṛhat Parāśara horā, texto que só é autoridade entre astrólogos desinformados, pois todos estão carecas de saber que esse texto além de diferir do original está cheio de interpolações, visto ser fruto de uma tentativa de recompor o texto datado de meados do século VI-VIII e que era dividido em dois khandas: pūrva e uttarakhanda. Inclusive, quem tentou recompor o texto original do BPHS foi um brāhmaṇa que viveu no século XIX. A partir daí algumas traduções e comentários começaram a surgir, dos quais o de Sitaram Jha ficou muito popular, embora esse só exista em hindi. Em inglês há apenas duas traduções, as quais são mais recentes, uma de Girish Chand Sharma e outra de R. Santhanam. Geralmente a tradução que as pessoas acessam pela internet é a do R. Santhanam e a maior parte dos astrólogos de hoje em dia usa essa versão como referência, a qual já possui alguns elementos distintos da tradução de Sitaram Jha e outros astrólogos inacessíveis para aqueles que não sabem hindi.

O que as pessoas em geral não sabem, no entanto, é de que os paṇḍītas em jyotiṣa não usam o BPHS como referência principal, mas apenas secundária, justamente por saberem dos problemas acima citados sobre o mesmo. As verdadeiras referências do jyotiṣa são, em especial, quatro textos clássicos: Bṛhat jātaka de Varāhamihira (séc. VI), Sārāvalī de Kalyāna (séc. X), Phaladīpikā de Mantreśvara (séc. XIII ou XV) e Jātaka pārījāta de Vaidyanātha (séc. XV). Nenhum paṇḍīta realmente versado toma do BPHS como autoridade principal, pois para entender o BPHS os textos acima mencionados é que são utilizados, pois em particular a Phaladīpikā é um texto de Parāśarī jyotiṣa e que apresenta os princípios de Parāśara livre das interpolações modernas de Jaimini jyotiṣa.

Dada essa introdução, agora podemos proceder para o verdadeiro intuito desse texto que é demonstrar  por meio de sólidas referências acadêmicas como a interpretação dos ślokas citados no artigo em que fui marcado é completamente incorreta, pois a pessoa em questão, por meio de apenas quatro ślokas mal interpretados do BPHS, tenta derrubar a ideia clássica - que ela de maneira cômica chama de moderna - de que os vargas devem ser usados apenas como divisões de um signo e não como “mapas divisionais”.

A pessoa em questão afirma que Parāśara nos pede para olhar o mapa navāṁśa, com suas conjunções, dṛṣṭis e casas, quando em momento algum Parāśara se refere a coisas do tipo. Nesses quatro ślokas, dois pedem apenas que olhemos o navāṁśa ocupado pelo lagna e pela cúspide da sete, algo comumente utilizado nos textos clássicos, inclusive nos quatro principais que mencionei mais acima, enquanto os outros dois ślokas tratam da técnica rāśi-tulya-navāṁśa, onde se transpõem o navāṁśa ocupado por um graha sobre o mapa natal para se obter uma informação adicional dos seus resultados. No caso, para que fique bem claro no que consiste a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa cito logo abaixo três exemplos:

(1) Suponhamos que alguém cujo lagna é áries tenha Maṅgala (Mar), o regente do lagna e da oito, em touro, no terceiro navāṁśa (entre 6º40’ e 10º00’ de touro) do signo, isso é, em peixes. Como peixes é a doze a partir do lagna áries, Maṅgala estaria em vyayāṁśa, ou seja, em um navāṁśa que equivale a doze (vyāya) do mapa natal.

(2) Agora imaginem que alguém cujo lagna é gêmeos tenha Śani (Sat), o regente da oito e da nove, em libra, mas entre 26º40’ e 30º’00 do signo. Nesse caso, Śani estaria ocupando o navāṁśa de gêmeos, o que transpondo para o mapa natal equivale a ter Śani no lagna, ou seja, em lagnāṁśanavāṁśa correspondente ao lagna.

(3) Por fim, vamos imaginar que um indivíduo possua o lagna em sagitário, sendo que Śukra (Vên), o regente da seis e da onze, ocupa peixes, mas entre 00º00’ e 3º20’ do signo. Nessa situação Śukra estaria ocupando o navāṁśa de câncer, que no mapa natal corresponde a oito, ou seja, Śukra estaria em nidhanāṁśa ou randhrāṁśanavāṁśa corresponde a oito do mapa natal.

Creio que com esses três exemplos ficou bastante claro como funciona a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa. Quem deseja saber mais a respeito da técnica, recomendo que estude o artigo “Rasi & Navamsa: Interchanging identicalness” presente no livro “Predicting through Navamsa & Nadi astrology”, escrito por Chandulal S. Patel, um dos maiores astrólogos e pesquisadores contemporâneos, que por sinal já partiu a alguns anos deixando para nós um legado brilhante e extremamente acadêmico por meio de seus livros, reconhecidos por qualquer estudante dedicado do jyotiṣa.

Em seu artigo acima mencionado, Chandulal S. Patel mostra como a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa funciona. Para isso ele cita dois textos onde ela foi extensivamente abordada: Deva keralam (a.k.a., Chandra kāla nāḍi) e Dhruva nāḍi, embora ele também mostre como até mesmo o Jātaka pārījāta tem alguns exemplos dessa técnica citados no mesmo, sendo o JP um dos quatro textos principais de jyotiṣa que menciono no início desse artigo. Curiosamente, em momento algum encontramos nos textos de Chandulal S. Patel qualquer menção ao navāṁśa enquanto um mapa divisional. Não só, nem sequer exemplos de leituras a partir dessa perspectiva são encontradas em seus textos. Isso é no mínimo muito curioso, uma vez que Chandulal S. Patel era um erudito versado em incontáveis textos clássicos, inclusive em diversos nāḍi-granthas que sequer foram traduzidos para o inglês. Ele até mesmo diz que se coletássemos todos os ślokas clássicos sobre o navāṁśa presentes nos livros de Mīnarāja, Sphujidvaja, Varāhamihira, Pṛthuyaśas, Kalyāna, Harji, Vaidyanātha, Guṇakāra, Mantreśvara, Balabhadra, Dhuṇḍirāja, Kamalakāra e outras autoridades do jyotiṣa, teríamos algo entre 2000 ou mais ślokas, os quais ele minuciosamente estudou e com isso escreveu seu longo texto sobre como utilizar o navāṁśa. Mais interessante ainda é notarmos que em momento algum ele cita o BPHS no seu livro, pois sendo um erudito, ele sabia muito bem que esse não era um texto tão confiável. Só hoje em dia as pessoas usam do BPHS para tudo, até para entender Jaimini, o que é lastimável, como já falei em um artigo passado sobre Jaimini jyotiṣa.

Mas bem, agora vamos falar dos quatro ślokas citados pela pessoa que desafia a ideia de que vargas não são mapas divisionais e de que essa é apenas mais uma invenção moderna de astrólogos que querem criar uma nova astrologia, como ela pontua em seu artigo.

ŚLOKAS
“Se no nascimento o lagna for áries, touro ou leão e Śani (Sat) ou Maṅgala (Mar) o ocupar, a criança nascerá com o cordão umbilical enrolado em um de seus membros. No caso, o membro correspondente será aquele indicado pelo rāśi ou navāṁśa do lagna. – BPHS, 14.08”

Comentário: o śloka acima é bastante claro, no entanto, para deixar ainda mais claro vou enumerar as condições necessárias para que um indivíduo nasça com o cordão umbilical enrolado em uma determinada parte do corpo:

1 – Śani ou Maṅgala devem ocupar o lagna, o qual deve ser áries, touro ou leão.
2 – A parte do corpo que estará enrolada pelo cordão umbilical será representa ou pelo rāśi (signo) que ocupa o lagna ou o navāṁśa do mesmo, ou seja, a porção de 3º20’ demarcada pelo grau do lagna.

Agora, imaginemos um exemplo: o indivíduo nasceu com Śani no lagna, sendo que o seu lagna reside a 6º15’ de touro, o que corresponde ao segundo navāṁśa do signo, ou seja, a aquário. Isso significa que o indivíduo em questão nasceu com o cordão umbilical enrolado ou no pescoço (touro) ou no calcanhar (aquário).

No comentário da pessoa que desafia minhas afirmações sobre os vargas não consistirem em mapas divisionais, mas apenas divisões de um signo, é afirmado que no verso em questão Parāśara se refere a olharmos o lagna do mapa navāṁśa, como se existisse algo como um mapa navāṁśa, com conjunções, dṛṣṭis e casas. Bem, o verso acima é bastante claro e não faz referência alguma a um mapa navāṁśa, como provei por meio da explicação acima, onde apenas o navāṁśa ocupado pelo lagna é observado, ou seja, uma subdivisão de um signo, sem considerar qualquer tipo de mapa à parte.

“Se o senhor da oito estiver conjunto a Rāhu em um kendra (1, 4, 7 ou 10), ou koṇa (5 ou 9) a partir da oito, ocupando randhrāṁśa, o indivíduo sofrerá com o inchaço de seus vasos sanguíneos, desordens urinárias, etc., durante o 18º e 22º ano de sua vida. – BPHS, 19.25”

Comentário: nesse śloka Parāśara se refere a randhrāṁśa, que no Dhruva nāḍī é chamado de nidhanāṁśa. No caso, randhrāṁśa ou nidhanāṁśa corresponde ao navāṁśa equivalente ao oitavo rāśi do mapa natal. Por exemplo, se o lagna de alguém é áries e um graha ocupa áries, mas no seu oitavo navāṁśa (23º20’ à 26º40’ do signo), isso significa que o mesmo estará em escorpião, o equivalente a oitava casa do mapa. Em outras palavras, tal graha estará ocupando nidhanāṁśa/randhrāṁśa.

Em momento algum Parāśara diz nesse verso que devemos construir um “mapa navāṁśa” e notar a oito do mesmo. O nome dessa técnica é rāśi-tulya-navāṁśa, que como disse mais acima, é muito popular em tratados como o Deva keralam (a.k.a. Chandra kāla nāḍi) e Dhruva nāḍi, mas presente também no Jātaka pārījāta em alguns poucos exemplos.

“O indivíduo obterá duas esposas se o senhor da sete estiver em nīcha (debilitação) ou em um krūra-rāśi (signo maléfico) conjunto a um krūra-graha (maléfico), enquanto o rāśi ou navāṁśa da sete pertence a um kliba-graha (graha eunuco, no caso, Śani ou Budha). – BPHS, 20.19”

Comentário: aqui Parāśara não fala sobre a técnica rāśi-tulya-navāṁśa, mas apenas sobre notar qual é o navāṁśa indicado pela cúspide da sete. Por exemplo, se o lagna está a 8º25’ de leão, naturalmente a cúspide da sete também estará situada a 8º25’, mas do signo de aquário, o que corresponde ao seu terceiro navāṁśa, ou seja, sagitário.

No śloka acima, Parāśara diz que, além do senhor da sete estar debilitado ou em um krūra-rāśi junto a um krūra-graha, o rāśi ou navāṁśa indicado pela cúspide da sete deve ser regida por Śani ou Budha, ou seja, deve corresponder a gêmeos, virgem, capricórnio ou aquário. Existe alguma necessidade de construir um “mapa navāṁśa”? Não, basta olhar o navāṁśa da sete em si, algo muito comumente utilizado nos clássicos em geral para determinar a natureza do esposo ou da esposa.

“Se o senhor da sete estiver na doze, enquanto o lagneśa ocupa dāraṁśa, o casamento se dará aos seus 23 ou 26 anos de idade. – BPHS, 20.31”

Comentário: aqui Parāśara se refere ao conceito de rāśi-tulya-navāṁśa mais uma vez, assim como no segundo śloka citado. Dāraṁśa se refere a “divisão da esposa”, o que no Dhruva-nāḍi é referido como bharyāṁśa. No caso, dāraṁśa ou bharyāṁśa seria um navāṁśa que corresponde ao rāśi indicado na sete do mapa natal. Por exemplo: se a sete do lagna é libra e um graha ocupa entre 0º00’ e 3º20’ de gêmeos, libra ou aquário, ele cairá no navāṁśa de libra, ou seja, estará em dārāṁśa ou bharyāṁśa. Agora lhes pergunto: onde entra aqui a questão de se construir um “mapa navāṁśa”?

CONCLUSÃO
Como ficou claro, os quatro ślokas citados acima - das centenas que a pessoa em questão clama haver no BPHS provando que vargas são mapas divisionais[1] - não falam em momento algum sobre um “mapa divisional”, pois eles ou se referem a notar o navāṁśa ocupado pela cúspide do lagna/sete ou então se referem a técnica de rāśi-tulya-navāṁśa, que por sinal também foi usada pelos astrólogos helenísticos e medievais, mas valendo-se da dodekatemoria, que é equivalente ao dvādaśāmśa (a.k.a., D12) dos indianos. Ou seja, tantos os astrólogos indianos quanto também os helenísticos e medievais jamais usaram de “mapas divisionais”, pois todos eles sempre consideraram as divisões dos signos como meras divisões de um signo. O mais próximo que tais astrólogos chegaram do conceito de mapa divisional é o que apresentei acima sob o nome de rāśi-tulya-navāṁśa, a técnica de transposição, que no caso dos helenísticos e medievais, até onde sei, não recebeu nenhum nome específico e não era aplicada em relação ao navāṁśa (exceto por Abū Ma’shar, que viajou a Índia, importou o navāṁśa, mas não voltou praticando "mapas divisionais", como fica mais do que provado em seus escritos), mas sim em relação a dodekatemoria (a.k.a. dvādaśāṁśa).

A ideia dos mapas divisionais é relativamente recente. Pode ser que tenha se originado com Sheshadri Iyer, um astrólogo do século passado, mas também é possível que seja um pouco mais velha que isso. Porém, o fato é que não se trata de uma teoria clássica, por mais que hoje em dia tenha se popularizado, o que para mim e também outros astrólogos com que tive o privilégio de aprender mais a respeito como Guru Rajesh Kotekal e Shanmukha Teli, principalmente, é apenas uma teoria moderna, para não falar que é apenas uma espécie de distorção do conceito clássico dos vargas.

oṁ tat sat



[1] Não sei onde, pois tenho registrados em arquivos de texto todos os ślokas sobre os vargas de cerca de uma dezena de clássicos, incluindo o BPHS, mas nenhum deles fala sobre mapas divisionais, ao invés disso tratam apenas sobre vargas, ou seja, divisões de um signo.

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