sábado, 15 de setembro de 2018

Sobre o aprendizado tradicional

Nos Yoga-sūtras de Patañjali ṛṣi, é dito (1.6) que a consciência (citta) passa por cinco tipos de modificações (vṛttis): conhecimento correto (pramāṇa), ilusão ou conhecimento errôneo (viparyaya), fantasia (vikalpa), sono (nidra) e memória (smṛti). Desses, o conhecimento correto, o sono e a memória são úteis no aprendizado, enquanto a ilusão e a fantasia são inúteis e devem ser removidos pelo cultivo de pramāṇa, o qual se subdivide em três tipos de acordo com os Yoga-sūtras (1.7): percepção direta (pratyakṣa), inferência lógica ou dedução (anumāna) e o testemunho das autoridades e das escrituras (āgama).

Alguém então pode se perguntar sobre qual seria a relevância desse tema para o jyotiṣa. Bem, a resposta é de que não é relevante para o jyotiṣa... é relevante para tudo! Qualquer coisa que passe pela mente pode ser categorizada como uma das cinco vṛttis, logo, quando estudamos jyotiṣa, essas mesmas vṛttis estarão atuando sobre a consciência e, portanto, interferindo no aprendizado.

Um exemplo pode nos ajudar a compreender isso melhor: um estudante deseja saber como ele pode prever se uma mulher poderá engravidar ou não e, para isso, ele inicialmente recorre a dedução (anumāna), que é uma das três formas de pramāṇa. Essa dedução, no entanto, pode ser imprecisa, ou seja, uma ilusão ou conhecimento errôneo (viparyaya). Também é possível que tal dedução não passe de uma grande fantasia (vikalpa), algo completamente fora da realidade do próprio jyotiṣa, ao invés de se tratar de um erro de julgamento envolvendo regras já existentes. Portanto, como tal estudante poderá resolver esse problema, uma vez que ele compreendeu que pode estar iludido ou fantasiando meios incorretos de prever o tema filhos? Ele deverá recorrer a āgama, ou seja,  o testemunho das autoridades e das escrituras.

Inicialmente, isso costuma se dar sob a guia de uma autoridade específica que fala ou não em consonância com as escrituras, mas posteriormente é essencial que o próprio indivíduo seja capaz de investigar as escrituras [o que não exclui o aprendizado com uma autoridade no assunto], pois só assim ele saberá de fato se aquela autoridade à que ele recorreu é, de fato, uma autoridade. Afinal, se ela discorre das escrituras, isso pode se dar devido a relatividade do tema[1] ou a um desvio. Portanto, é bom que o indivíduo disponha de alguma informação prévia que o ajude a discernir quem é uma autoridade ou não, caso contrário, pode acabar investindo tempo em um estudo incorreto do assunto. Além do que, entra em questão a sua sinceridade, pois somente o indivíduo sincero terá o privilégio de ser guiado por uma autoridade competente no assunto em que ele deseja se aprofundar.

Uma vez em contato com o testemunho das autoridades e das escrituras, o indivíduo poderá comprovar por sua própria experiência e percepção pessoal (pratyakṣa) a veracidade do conhecimento transmitido, além do que, será capaz de realizar inferências e deduções lógicas (anumaṇa) que o levarão a ganhar cada vez mais proficiência no tema. Dessa forma, ilusões e fantasias serão gradualmente dissipadas e o conhecimento real (pramāṇa) se estabelecerá, o que lhe trará confiança.

Nesse processo todo, as outras duas vṛttis: o sono e a memória, também desempenharão funções importantes. Sem um sono regulado a consciência perde a sua acuidade, enquanto que sem o exercício da memória, o conhecimento adquirido se perderá, o que levará a erros de julgamento e à apreensão incorreta do tema, ou seja, a ilusões (viparyaya) e fantasias (vikalpa). Logo, não é a toa que as tradições indianas, de forma geral, estimulam o aprendizado oral e a memorização de ślokas (versos) e princípios de uma determinada disciplina, pois assim a memória se torna cada vez mais afiada. Isso tudo, naturalmente passa a ser mais eficaz quando combinado ao exercício da contemplação, seja de um mantra ou qualquer outra prática meditativa, assim como também pelo cultivo de dieta e hábitos que fortaleçam sattva (o atributo do equilíbrio, do discernimento e da pureza). Dessa forma, estudo e sādhana (disciplina espiritual) acabam andando juntos dentro da metodologia de ensino tradicional, a qual condena a conduta indisciplinada e epicurista (i. e., hedonista) daqueles que acham que o aprendizado de uma disciplina  é meramente uma atividade intelectual, o que não demanda, portanto, qualificações morais e éticas. Mesmo na grécia antiga, mestres como Platão e Sócrates condenavam a conduta desregrada no aprendizado da filosofia, logo, essa não é uma exclusividade da metodologia oriental.

Ao descrever o tipo de astrólogo que está apto a realizar predições de sucesso, Parāśara, por exemplo, chega inclusive a dizer que ele deve ser um jitendriya, alguém que exerce controle sobre os seus sentidos. Não só, Parāśara também diz que o estudante de jyotiṣa deve ser pacífico, respeitoso para com os seus preceptores, temente a Deus, devotado, gentil, etc., pois sem empenhar-se no cultivo de sattva, nenhum conhecimento pode ser apreendido corretamente, pois ou será maculado pelo egoísmo e a impaciência características de rajas ou será distorcido pela natureza obscura e degradante de tamas, assumindo uma forma completamente contrária a esperada. Inclusive, pode-se dizer que o conhecimento errôneo (viparyaya) e a fantasia (vikalpa) nada mais são do que interferências de rajas e tamas sobre a consciência.

Logo, não só no jyotiṣa, como também no āyurveda, nas tradições de yoga, etc., vemos que o critério necessário para o aprendizado é sempre alto, pois a responsabilidade daquele que lida com tais conhecimentos é muito grande. O problema, no entanto, é que poucos estão realmente dispostos a cumprir com tais critérios, pois ao invés de visarem ser úteis a sociedade, buscam ser importantes! O resultado disso é uma disseminação de ensinamentos incorretos (viparyaya) e fantasias (vikalpa), justamente aquilo que a metodologia de ensino tradicional visa remover. Assim, aqueles que deveriam ajudar a sociedade a ter mais clareza, acabam sendo disseminadores de mais ignorância.

oṁ tat sat




[1] Por exemplo, nos textos de jyotiṣa existem opiniões distintas sobre quais seriam os mṛtyu-bhagas (graus fatais) de cada signo.

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