terça-feira, 24 de setembro de 2019

Desmistificando o horóscopo diário

Muitas pessoas acabam entrando em contato com a astrologia por meio dos horóscopos de jornais, revistas e sites, os quais se baseiam no signo solar, geralmente tropical, para realizar certas predições diárias, semanais, quinzenais ou mesmo mensais. Naturalmente, por uma questão de praticidade, tais predições se confinam ao signo solar e, portanto, dividem toda a humanidade, com seus aproximadamente oito bilhões de seres humanos, em apenas doze padrões astrológicos.

Essa prática teve origem em meados de 1920, por influência de Alan Leo, que sendo um dos primeiros astrólogos designados modernos e um perito homem de negócios, com escritórios em Londres, Paris, Nova Iorque e uma equipe de cerca de doze pessoas, começou a produzir milhares de horóscopos ao ano, todos baseados em um único e simples fator acessível a todos: o signo solar (tropical). Definitivamente, essa foi uma jogada de marketing brilhante, isso é inegável, pois com isso Alan Leo conseguiu engordar seu bolso e massificar o interesse pela astrologia, que antes era um assunto complexo e geralmente limitado a classe intelectual ou mais abastada. Graças a sua “contribuição”, agora toda e qualquer pessoa, sabendo sua data de nascimento, pode consultar seu horóscopo diário, semanal, etc., não sendo necessário saber qual é o seu ascendente, posição lunar e muito menos as posições dos outros grahas, as relações entre eles, suas dignidades e tantas outras informações “enfadonhas”.

Agora, pensem comigo: faz sentido dividir toda a humanidade, com seus aproximadamente oito bilhões de seres humanos, em apenas doze padrões astrológicos? Não, isso não faz qualquer sentido. É completamente absurdo e, portanto, não passa de uma jogada de marketing ou de puro entretenimento. Não há diferença alguma entre essa abordagem e os anúncios de internet como: “aprenda a tocar qualquer instrumento em uma semana!”, ou “alcance o sucesso seguindo apenas três passos!”. Ainda assim, muitos não percebem isso ou quando percebem, já logo assumem que astrologia é apenas mais uma forma de charlatanismo.

Para piorar a situação, hoje em dia os horóscopos solares evoluíram, tornando-se mais sofisticados – graças as facilidades da internet e do mundo moderno -, mas não menos fajutos. As pessoas agora não se limitam necessariamente aos trânsitos a partir do Sol e elas ainda usam de belas imagens, enfeitam o que escrevem com figuras de linguagem, impulsionam suas páginas e publicações e, assim encantam seus leitores, seja pelo conteúdo sedutor seja pelo seu grande número de seguidores, pois há quem pense que quantidade e qualidade são a mesma coisa. Bem, eu não sou contra o uso dessas ferramentas, especificamente, e a minha intenção não é desqualificar essas atividades, pois o que estou apontando aqui é na verdade a falta de substância por trás de quem usa todos esses recursos, no intuito de mascarar sua própria incapacidade, enquanto astrólogo. A partir do momento que alguém se diz astrólogo só porque escreve belas poesias e atrai um público maior de pessoas por meio de jogadas de marketing, isso não é mais astrologia, mas sim entretenimento, business, ou pior: atividade mercenária. Astrologia é outra coisa, bem mais complexa e muitíssimo mais nobre. Inclusive, de acordo com os próprios astrólogos do passado, apenas um brāhmaṇa pode ser um astrólogo de verdade, sendo que brāhmaṇas não comprometem seu idealismo por ganhos, popularidade ou o que quer que seja, como tendem a fazer os vaiśyas (comerciantes) ou śūdras (indivíduos de quarta classe). Brāhmaṇas sempre falam a verdade e se preocupam com a educação dos demais, mesmo que isso lhes traga algum prejuízo, seja ligado à sua imagem pública, a sua situação econômica, etc.

Dessa forma, é fundamental entendermos que alguém que escreve belas poesias usando do céu do momento como referência não é necessariamente um astrólogo. Pode sim ser um poeta que flerta com a astrologia, pode até ser muito carismático e ter muitas outras qualidades, mas definitivamente, isso não qualifica ninguém como astrólogo. O que qualifica alguém como astrólogo é a capacidade não só de delinear um mapa, ou seja, de interpretá-lo, como também a capacidade de prever eventos (especialmente concretos) com algum grau de precisão. Até mesmo no Kṛṣṇīyam, do astrólogo Śrī Kṛṣṇācharya[1], é afirmado que, por definição, astrólogo é quem prevê. Ele até mesmo usa da palavra ādeśa, que significa “ordem”, para expressar que um astrólogo deve prever e que a essência da prática astrológica é essa: como prever os resultados das ações de um indivíduo.

Mas hoje, por influência da modernidade e em particular das vertentes astrológicas modernas como a vertente humanista, psicológica, etc. (as quais tem seus méritos, mas também deméritos), os astrólogos tendem a evitar as predições, especialmente no ocidente. Porque? Minha conclusão sobre isso é de que a razão maior desse tipo de comportamento é a crassa subjetividade em que tais astrólogos se veem inseridos. Cada um pensa de uma forma, afirma uma coisa, sente de um jeito, enfim, ser vago passou a ser mérito, soa como originalidade ou flexibilidade, enquanto ser objetivo e colocar os pingos nos is é brutalidade, dogma, negatividade ou qualquer outra coisa pejorativa. Assim, é melhor seguir poetizando a vida e imaginando um monte de coisas sem definição muito clara do que tentar definir algo. Na linguagem do yoga, inclusive, há um nome para isso: vikalpa – fantasia, e, definitivamente, não é algo positivo e que se deva cultivar. Pelo contrário, trata-se de uma das modificações (vṛttis) negativas da mente, que não nos deixa enxergar a realidade. Portanto, precisamos ir atrás das definições, precisamos sim enquadrar as coisas, classifica-las em femininas e masculinas, maléficas e benéficas, fortes e fracas, etc., invés de deixa-las todas soltas e vagas. A fantasia é justamente a antítese do discernimento, ou seja, é a própria carência de discernimento, é estar sujeito a inconsciência e, portanto, a ignorância.

Onde quero chegar com tudo isso? No seguinte ponto: não bastasse a astrologia moderna ocidental já estar impregnada de definições vagas e conceitos equivocados, incluindo os horóscopos solares, hoje vejo pessoas praticando jyotiṣa dessa mesma forma. Tem se tornado moda criar horóscopos diários com linguagem florida e poética, interpretando os posicionamentos dos grahas e até mesmo o pañchāṅga sem nem sequer dar bola para os parâmetros clássicos de interpretação. Como? Bem, da seguinte forma: “Ah! Hoje é daśamī-tithī (o décimo dia lunar), dia presidido por Yama, portanto, basta eu escrever algo bem bonito sobre a morte do obsoleto, a necessidade de respeitarmos limites e de cultivarmos disciplina. Isso vai me render vários likes, assim vou me manter popular no meio da astrologia”.

Isso soa duro? Pode até soar, mas é a verdade. Já vi por aí mais de uma dezena de pessoas no meio do jyotiṣa, seja no Brasil ou fora, se vendendo para essa mesma abordagem fajuta que é tão amplamente disseminada na astrologia ocidental. Anos atrás eu não via isso por aí, mas de uns anos para cá essa abordagem de entretenimento tem ganhado cada vez mais força no jyotiṣa. Com isso, sem dúvida a sociedade vai ganhando novos poetas, mas o problema é que esses poetas não se definem como poetas, mas sim como astrólogos. É como alguém que faz arte com ferramentas cirúrgicas, se diz médico só porque manipula essas ferramentas, mas quando se trata de realmente fazer uma cirurgia, ele é incapaz. Isso é incabível e um comportamento irresponsável ou no máximo ingênuo, o que embora seja mais perdoável, ainda assim não nega reações negativas.

Exposta essa crítica, que é bem-intencionada e cujo único propósito é trazer esclarecimento, agora posso falar sobre como é a abordagem tradicional das predições regulares, sejam elas diárias, semanais, etc. Com isso cada um pode contrastar por conta própria a abordagem moderna com a abordagem tradicional e ver o que tem mais substância, ainda que apreender o método tradicional demande muito mais do que apreender o superficial método moderno.

Em primeiro lugar, para os indianos, o dia é interpretado não só com base nas posições dos grahas, mas também com base no pañchāṅga, um elemento essencial de muhūrta, a astrologia eletiva. O pañchāṅga é constituído de cinco elementos: vāra – dia da semana, tithī – dia lunar, nakṣatra – asterismo ocupado por Chandra (Lua), karaṇa – a metade de uma tithī, e nitya yoga – vinte e sete padrões obtidos pela somatória das longitudes de Sūrya (Sol) e de Chandra. Desses cinco elementos, os três primeiros são especialmente importantes, pois, de acordo com as várias permutações possíveis entre eles, diferentes yogas se originam.

Por exemplo, se alguém deseja em um determinado dia realizar uma atividade auspiciosa, deve então consultar se aquele dia contém um yoga auspicioso, como siddha ou savārtha-siddhi yoga, invés de yogas negativos como mṛtyu, visa ou dagḍhā yoga. Isso é muito diferente de querer interpretar poeticamente as qualidades dos nakṣatras, tithīs, etc., o que vejo ocorrendo hoje em dia entre pessoas que nem sequer estudaram os fundamentos do pañchāṅga, os muhūrta yogas, etc., daí de ficarem surfando em interpretações vagas e subjetivas, usando de imagens atraentes e outros artifícios. Se alguém realmente deseja interpretar o pañchāṅga diário, deve partir dos fundamentos clássicos, especialmente os muhūrta yogas, chamados de vāra-tithī-nakṣatra yogas. Eles são a principal base das predições de dias auspiciosos e negativos, sem nem sequer levar em conta o horóscopo individual. Inclusive, há VTN yogas para diferentes tipos de atividades, assim como há também regras mais específicas, envolvendo certas configurações dos grahas e outros elementos astronômicos importantes. Por exemplo, um casamento ou qualquer função importante relacionada a vida afetiva, idealmente não deve ser realizada quando Śukra (Vênus) e Guru (Júpiter) estão combustos ou de alguma forma fracos nem quando há certos doṣas (desarmonias) presentes no dia em questão, como ekārgala, upagraha, mṛtyu pañchaka, etc.

Além desse método, que é a base do muhūrta-jyotiṣa, há também métodos mais específicos para jātaka-jyotiṣa, a astrologia natal, os quais geralmente vão ser utilizados em conjunto com os métodos de muhūrta-jyotiṣa. Um desses métodos envolve notar o signo ou nakṣatra ocupado por Chandra no nascimento e, a partir disso, prever quais trânsitos seriam mais negativos ou positivos para o indivíduo, o que também não é lá tão preciso quando usado isoladamente, pois se assemelha ao horóscopo solar, uma vez que ignora todos os outros elementos de um horóscopo, como a posição do ascendente e dos outros oito grahas, isso para não falar também das daśās e outros elementos mais sutis. O diferencial, nesse caso, é que Chandra é um significador pessoal muito mais preciso do que Sūrya, pois o movimento de Chandra é de um nakṣatra ao dia, ou de um signo a cada dois dias e meio, enquanto Sūrya permanece um mês inteiro em um signo. Sade-sati, ardhāṣṭama e aṣṭama Śani, os trânsitos negativos de Śani, foram todos definidos com base nesse método. Há ainda astrólogos, como Sheshadri Iyer e K. N. Rao, que preferem usar o ascendente como referência principal para a leitura dos trânsitos, invés de Chandra. Eu sem dúvida concordo com eles, pois o ascendente muda de signo a cada duas horas, em média, logo é muito mais específico do que usar o Chandra ou Sūrya lagna.

Outro método, bem mais preciso, foi ensinado por Mantreśvara em sua Phaladīpikā. Nesse não é necessário saber as posições de todos os grahas no mapa do indivíduo, embora seja muito melhor saber isso, obviamente. No caso, atenção especial é dada ao trânsito do regente do ascendente, seja pelos pontos natais ou em relação a outros grahas em trânsito. Nota-se também nesse método os trânsitos de outros grahas pelo ascendente ou pela posição natal do senhor do ascendente.

Por fim, outro método, que não é o último desses, mas sim o último que abordarei aqui, envolve justamente consultar com regularidade as mudanças de daśās e de trânsitos sobre o próprio mapa. Esse é o método mais confiável, sem dúvida alguma, pois é absolutamente específico ao indivíduo. Por sinal, não só esse método como também o último que descrevi mais acima, e em parte até mesmo o primeiro, demanda um bom nível de conhecimento astrológico e, portanto, não se destina as pessoas em geral, mas apenas a quem estuda com seriedade a astrologia. Porém, não é porque esses métodos não são acessíveis, especialmente o segundo e o terceiro, que isso justifica recorrer a métodos baratos e fajutos, como os horóscopos solares ou qualquer outra invenção simplista.

Se alguém não consegue consultar as influências de um dia específico ou os trânsitos sobre o seu próprio mapa, basta consultar um astrólogo de sua confiança. Ninguém (idealmente) sai fazendo diagnósticos médicos por conta própria sem ter conhecimento para isso. Ninguém também sai se consultando ou buscando os diagnósticos de qualquer um por aí, especialmente quando a própria saúde está em jogo. Da mesma forma, se alguém deseja entender os efeitos dos grahas sobre a própria vida, seja durante um dia, uma semana, mês, ano, o que for, tem de se consultar com um astrólogo ou estudar a astrologia. Certamente, essas são as duas únicas possibilidades. Elas demandam dinheiro, tempo ou trabalho árduo, com certeza, mas o que na vida não demanda dinheiro, tempo ou trabalho árduo? Só as coisas sem qualidade, tal qual os horóscopos solares ou mesmo os lunares, que agora estão ganhando destaque no jyotiṣa, na forma de uma “contraparte indiana” do que foi idealizado lá atrás por Alan Leo.

oṁ tat sat



[1] Kṛṣṇīyam, 01.02

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