Em relação ao primeiro passo
da nossa investigação, é notável que o kāla/daiva (tempo/destino) é
referido no Bhagavata-purāṇa[1],
o comentário natural ao Vedānta-sūtra, como imutável. Isso é
consubstanciado por várias passagens do Rāmāyaṇa, Mahābhārata, Bhagavad-gītā
e das Upaniṣads. Na Gītā, por exemplo, os versos 5.8-9, 5.14,
13.20, 13.30, 13.32 etc., são alguns exemplos onde se esclarece que todas as
ações realizadas dentro da realidade material são produto de prakṛti/traiguṇya
(a natureza fenomênica/os três guṇas), e não do ser vivo (jīva).
Há também versos como 2.14 que esclarecem como a experiência da dualidade dentro
dessa realidade é inevitável e deve ser tolerada, ou seja, não há como
controlarmos o destino ao nosso bel-prazer. Ao invés de estimular o controle sobre a
natureza, o vedānta nos ensina a importância de se cultivar o desprendimento
e a equanimidade (frutos naturais do sacrifício espiritual) como um meio de não
se deixar afetar pelas dualidades (alegrias e tristezas, honra e desonra etc.)
do mundo, visto que essas não têm relação alguma com a alma nem a afetam. Ou seja, a mensagem do vedānta é sobre curvar-se perante a
realidade, ao invés de chocar-se com ela. Dada a natureza transcendental da alma, não há porque se
deixar abalar pelas experiências transitórias e naturais deste mundo.
Em vista dessas
afirmações todas dos śāstras, fica evidente que qualquer movimento
realizado dentro do mundo material é oriundo da ação dos guṇas, logo,
ele precisa se expressar dentro de suas leis. Por exemplo, se eu me
dedico a realizar uma peregrinação, um ato espiritual, para isso eu preciso
usar o meu corpo, a minha mente etc., logo, essas ações todas também precisam
estar representadas nos símbolos astrológicos, os quais abordam justamente os guṇas/prakṛti
que envolvem tanto os aspectos materiais densos (o corpo) quanto sutis (a
mente, o intelecto e o falso-ego/ahaṅkāra). Essa mesma lógica se aplica
a qualquer outro tipo de ação voltada para o âmbito espiritual.
Esclarecidos brevemente esses pontos, nós podemos prosseguir agora para a segunda etapa da nossa investigação: a busca por referências nos śāstras de jyotiṣa que tratem da vida espiritual.
Praticamente todos os
textos de jyotiṣa contam com um capítulo ou versos que abordam os pravrajyā
yogas, configurações de renunciantes. Esses yogas, de acordo com os
astrólogos clássicos, não só determinam um renunciante dedicado às práticas
espirituais como definem a que ordens espirituais ele pertencerá. Entre os
versos que tratam desses yogas, há até mesmo alguns que dizem se o
indivíduo cairá de seus votos, se ele alcançará um status especial de
liderança, se atingirá mokṣa (a libertação do saṁsāra) etc. Não
tenho como citar cada um deles aqui, mas essas referências estão todas
espalhadas em clássicos como Bṛhat jātaka, Sārāvalī, Phaladīpikā,
Jātaka pārījāta etc., os quais pertencem à tradição yavana/parāśarī
de jyotiṣa.
Na tradição Jaimini, por
exemplo, há também incontáveis referências sobre vida espiritual. No Upadeśa-sūtra,
o principal clássico dessa tradição, o sábio Jaimini descreve por meio do ātmākāraka
(o graha que trata do progresso espiritual do indivíduo na vida atual)
se o indivíduo viverá bandhana (o enredamento material) ou mokṣa
(a libertação do saṁsāra). Há até mesmo alguns yogas que ele
cita, que detalham se o indivíduo passará pelos planos infernais, celestiais –
ambos indicativos de sua necessidade de reencarnar -, ou se ele atingirá mokṣa.
Não só, Jaimini também descreve alguns métodos pelos quais se pode determinar
quais divindades o indivíduo adorará, algo que outros autores dessa tradição
expandiram em seus tratados. No Jyotiṣa phala ratna mala, por exemplo,
são citados inúmeros upāsana yogas, configurações que descrevem se o
indivíduo será dedicado a práticas vaiṣṇava, vaidika, śaiva, śakta,
se ele será um ateísta, blasfemo, e até mesmo se ele atingirá siddhi (a
perfeição) em suas práticas espirituais ou não. Há também versos na tradição de
Jaimini que descrevem se o indivíduo terá uma relação leal com seus gurus
ou não, se ele os trairá, se abandonará o dharma para se dedicar a um
caminho tortuoso e hipócrita etc. Portanto, está mais do que claro que os
clássicos de jyotiṣa descrevem inúmeros detalhes sobre a vida espiritual
de alguém, o que inclui coisas como: se o indivíduo terá um guru ou não,
se ele será dedicado a práticas espirituais e que práticas são essas, se ele
terá êxito ou não em suas disciplinas, se ele atingirá a libertação do ciclo de
nascimentos e mortes etc. Não restam dúvidas de que os astrólogos clássicos
investigavam a vida espiritual pelo mapa, pois conscientes como eram da
doutrina védica, eles não dissociavam a vida espiritual do mapa, pois sabiam
que o kāla/daiva (tempo/destino) inclui em si o progresso espiritual,
afinal, Deus é imanente nas leis naturais. O próprio Kṛṣṇa, na Gītā,
afirma: “kalo’smi – Eu Sou o tempo” - verdade essa que é elaborada mais
detalhadamente no terceiro canto do Bhagavata-purāṇa, na conversa entre
o avatāra Kapila Deva e Sua mãe, Devahutī.
Por fim, nos resta investigar o último elemento para confirmar se realmente a vida espiritual pode ser investigada no mapa ou não: os mapas de sādhakas (praticantes espirituais) e siddhas (santos, almas autorrealizadas). Tudo o que vimos aqui até então constitui śabda, o veredito dos śāstras, no qual somos encorajados a ter fé, mesmo que não tenhamos experiência direta disso. Porém, śabda aponta para pratyakṣa, a experiência direta. Essa experiência só podemos ter se colocamos em prática o que o śabda nos comunica, o que nesse caso demanda o estudo de mapas de sādhakas e siddhas. Mas como exibir mapas aqui estenderia demais esse artigo, vou me ater a simplesmente citar configurações clássicas presentes nos mapas de figuras espirituais reconhecidas.
Por exemplo, Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, um santo gauḍīya vaiṣnava, tinha um pravrajyā yoga clássico em seu mapa: quatro grahas em um mesmo signo, todos dispostos por um Śani (Saturno) forte. De fato, ele se tornou um renunciante, o que se deu justamente na sua mahādaśā de Śani, na qual ele formalizou o seu voto de renúncia, tornando-se um sannyāsi (pregador itinerante).
Outro santo da tradição gauḍīya,
Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura, tinha uma combinação de Guru (Júpiter), Budha (Mercúrio)
e Ketu em virgem, em koṇa de Chandra (Lua), o que de acordo com referências
nāḍī torna o indivíduo um conhecedor de verdades espirituais (jñānī)
e um devoto (bhakta). A partir da perspectiva de Jaimini, essa
configuração de Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura, também remete a um mukta-purūṣa,
ou seja, uma alma liberta, pois ela se dá em um ponto específico a partir do
seu ātmākāraka (Śukra - Vênus) que gera esse fruto particular.
O santo cristão, São Francisco
de Assis, é um outro exemplo interessante. Embora não se saiba o horário de seu
nascimento, o dia em si é conhecido, e calculando o seu mapa
encontramos um pravrajyā yoga clássico, envolvendo quatro grahas
em câncer. Além disso, assim como Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, São
Francisco de Assis também tinha Chandra (Lua) e Guru (Júpiter) conjuntos, o que
remete a alguém piedoso, sábio e de mentalidade elevada.
Enfim, eu poderia citar muitos outros exemplos, pois se tem um tema no qual me debrucei demoradamente foi esse. Tenho comigo centenas de mapas de sādhakas e siddhas e já investigo o assunto há mais de uma década. Porém, julgo que esses exemplos já dão uma boa ideia de como a vida espiritual está sim descrita no mapa astrológico. Ainda assim, acho essencial ressaltar um ponto bastante importante: os astrólogos não substituem os gurus, logo, é melhor consultarmos a nossa vida espiritual com nossos gurus do que com os astrólogos. Na Índia, os astrólogos são consultados principalmente para questões materiais, ao passo que para questões espirituais os indianos consultam os seus gurus. Isso, no entanto, não exclui o fato de que sim, a vida espiritual está expressa no mapa, porém, visto que o astrólogo é um ser limitado e, em geral, condicionado pela influência material, ele pode errar em seus julgamentos, especialmente quando se aventura a determinar qual é o iṣṭa-deva (a divindade adorável) de alguém, qual caminho espiritual ela seguirá, se alcançará mokṣa ou não etc.
A tradição védica nos recomenda a buscar auxílio espiritual com baddha-mukta-jīvas (almas que se libertaram do condicionamento material), nitya-mukta-jīvas (almas libertas que descendem a esse mundo – e que são muito raras), ou no mínimo com praticantes avançados e com um bom esclarecimento escritural, e não com baddha-jīvas (almas condicionadas/espiritualmente ignorantes). Logo, se você se decidir por consultar a sua vida espiritual com um astrólogo, tenha em mente que, embora ele possa sim realizar uma leitura bastante precisa a respeito do tema (especialmente se ele é um praticante espiritual sincero e com um bom grau de conhecimento), há também chances significativas de que ele erre nos julgamentos e te deixe mais confuso do que esclarecido em relação a esse assunto – o que é bem mais frequente. De qualquer forma, não importa a decisão que alguém tome, no final das contas o que prevalecerá é o seu karma particular. Uns tem a boa sorte de obter bons conselhos, outros não, e não há novidade alguma nisso.
oṁ
tat sat
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