domingo, 16 de dezembro de 2018

Do vedāṅga ao vedānta

As experiências que vivenciamos neste mundo são todas orquestradas pelos três guṇas (qualidades da natureza), a saber, rajas (paixão), sattva (bondade) e tamas (obscuridade). Inclusive, os três invólucros da ātmā (alma), o corpo grosseiro (sthula-śarīra), sutil (sukṣma-śarīra) e causal (karaṇa-śarīra), os quais podem ser experimentados nos estados de vigília, sonho e sono profundo, são todos parte da prakṛti (a natureza material), ou seja, estão sob o jugo de sattva, rajas e tamas.

O seguinte śloka da Bhagavad gītā (13.20) evidencia isso, pois diz:

prakṛtiṁ puruṣaṁ caiva viddhy anādī ubhāv api |
vikārāṁś ca guṇāṁś caiva viddhi prakṛti-sambhavān ||

"Saiba que ambos, prakṛti e jīva [o ser vivo], não possuem origem [são eternos]. Saiba também que o corpo, os sentidos, a felicidade e o sofrimento, manifestam-se todos a partir da prakṛti, não do jīva."

Já o śloka (7.4) abaixo, também da BG, esclarece do que prakṛti se constitui, incluindo não só a matéria grosseira como também sútil:

bhūmir āpo 'nalo vāyuḥ
khaṁ mano buddhir eva ca
ahaṅkāra itīyaṁ me
bhinnā prakṛtir aṣṭadhā

"Terra, água, fogo, ar, éter, mente, inteligência e o falso ego, juntos constituem as oito divisões da Minha prakṛti [energia material]."

Ou seja, os três corpos, os sentidos e as experiências alegres e tristes são todas produzidas pela prakṛti, cuja natureza em nada difere dos três guṇas e dos oito tattvas (elementos) acima mencionados. O jīva em si não é a causa desses eventos. Inclusive, o elemento que desencadeia todas essas experiências latentes na prakṛti é o kāla (o tempo), outro elemento eterno, o qual também pode ser reconhecido como daiva (o destino) ou Paramātmān (a Superalma onipresente ou o Deus imanente), que na Bhagavad gītā (18.14), Śrī Kṛṣna se refere como sendo o quinto fator causal por detrás de todas as ações.

Um astrólogo é justamente alguém que estuda a ação entrelaçada do kāla, do karma e de prakṛti, três tattvas inseparáveis e que constituem o nosso campo de experiência material (kṣetra). Logo, não é difícil para um astrólogo compreender, ainda que teoricamente, o que o vedānta afirma a respeito das experiências agradáveis e desagradáveis jamais afetarem o jīva, o qual é absolutamente distinto da prakṛti. Isso se dá pelo simples fato de que um astrólogo testemunha constantemente a imutabilidade do prarabdha (o karma a ser vivenciado ao longo de uma vida). Inclusive, o vedānta nos permite compreender que aquilo que leva o jīva a se sentir afetado pelas transformações próprias aos guṇas é, na verdade, avidyā, a ignorância causada por seu contato com māyā/prakṛti, a qual por meio dos três invólucros acima citados (sthula, sukṣma e karaṇa-śarīra), distancia o jīva de sua consciência pura.

O seguinte śloka do Śrīmad Bhāgavatam (1.7.5) dá evidências claras disso:

yayā sammohito jīva ātmānaṁ tri-guṇātmakam |
paro 'pi manute 'narthaṁ tat-kṛtaṁ cābhipadyate ||

"Confuso por māyā, o jīva, embora separado dos três guṇas, considera a si mesmo como sendo constituído dos mesmos, assumindo assim uma existência material."

No entanto, mesmo sabendo que as experiências duais presentes na existência material são fixas e não guardam relação alguma com o jīva, não conseguimos permanecer equânimes, pois seguimos absortos em tais experiências, sofrendo com os eventos tristes, os quais buscamos evitar a todo custo e nos exaltando em momentos felizes, momentos esses que ansiamos. Ter apenas o conhecimento teórico desse fenômeno não é suficiente para nos tornar indiferentes a tudo aquilo que este mundo tenha para nos oferecer. Por isso, o K. N. Rao muito assertivamente diz em seu 'Karma, rebirth and astrology' que um astrólogo ou estudante de jyotiṣa de moral reta não ficará estagnado no jyotiṣa, mas viajará do vedāṅga (jyotiṣa) para o vedānta, pois uma vez que tenha compreendido a natureza do fenômeno material (prakṛti, kāla e karma) pelo estudo analítico que o jyotiṣa oferece, ele naturalmente se voltará para a compreensão de sua identidade espiritual (sva-tattva) em relação a Deus (para-tattva), o que demanda não só conhecimento teórico do verdadeiro objetivo da vida, como também da disciplina espiritual necessária para se alcançar tal objetivo (sādhya-sādhana-tattva).

Da mesma forma, um astrólogo com tal compreensão não se contentará em apenas delinear as fortunas e infortúnios daqueles que o buscam (embora as vezes não lhe reste outra opção), senão que desejará trazer luz ao fato de que fortunas e infortúnios, além de efêmeros e imutáveis, não guardam relação alguma com a nossa verdadeira realidade, que é essencialmente espiritual e intocada pela dualidade material. Trazer isso à tona, por si só já minimiza a lamentação, o medo e a ansiedade.

Reconectar as pessoas com uma perspectiva holística da vida é o verdadeiro propósito de toda ciência tradicional, tal qual o jyotiṣa, o āyurveda, etc., pois afinal, se não fosse esse o propósito desses saberes, encerrar-se-iam em si mesmos como é o caso das disciplinas modernas e não poderiam, portanto, ser classificados como holísticos. Inclusive, Yogī Bhaskarānanda, o jyotiṣa guru do K. N. Rao, disse o seguinte em relação a isso: "Se você não sabe como ver a vida de forma holística, você é um tolo, e é justamente entre os 'educados' que encontramos um maior número de tolos". Astrólogos que não se atentam a esse fato, que não se empenham em cultivar compreensão espiritual e em remover, por meio dessa mesma compreensão, as ansiedades daqueles que lhes procuram, apontando a verdadeira solução para os problemas da vida quando esses as buscam, ao invés de remédios e soluções fajutas, apoiadas em uma compreensão filosófica e espiritual precária, só podem dar um aconselhamento vago e insubstancial. Tais astrólogos sabotam assim a si mesmos e a seus clientes, pois não estão interessados no verdadeiro conhecimento que o jyotiṣa visa evocar, a partir de sua perspectiva holística, mas sim em fama, lucro e seguidores.

Não a toa, o K. N. Rao insiste que a combinação perfeita para o sucesso tanto no campo da predição quanto também no aconselhamento é aliar o conhecimento acadêmico do jyotiṣa a uma vida limpa e espiritual. Isso implica, principalmente, manter uma dieta sattvika (lacto vegetariana e livre do uso de intoxicantes), realizar mantra-japa regularmente e com determinação, estudar os vedas e focar mais em pesquisa e estudo do que em atendimentos, uma vez que o tema é muito vasto para ser dominado em pouco tempo.

oṁ tat sat

Nenhum comentário:

Postar um comentário