segunda-feira, 24 de junho de 2019

Os desafios do homem moderno em compreender a literatura clássica do jyotiṣa

A literatura clássica do jyotiṣa, além de vasta, é densa e pesada. Nela, os princípios da astrologia não são extensivamente explicados, pelo contrário, são apresentados de forma concisa quando não enigmática. Porque? Porque espera-se que o estudante reflita com esmero. O conhecimento não vem mastigado e há certas coisas que somente um jyotiṣa-guru pode esclarecer, uma vez que ele detém mais experiência e pode nos facilitar a caminhada, remover nossas percepções equívocas, etc.

Vejo com frequência as pessoas ficando em choque diante de afirmações isoladas dos śāstras, as quais elas julgam fatídicas, quando na verdade a verdadeira intenção do śāstra é nos instruir sobre fundamentos básicos e que, para isso, demandam a clara demarcação de contrastes. Não se espera que cada resultado descrito se cumpra, mas sim que o astrólogo em si aprenda a pensar astrologicamente. O que se apresentam nos ślokas e sūtras são possibilidades de interpretação dentre uma infinidade de possibilidades naturais, uma vez que para uma mesma configuração há um número sem par de variáveis envolvidas.

Por exemplo, é notável que no que se refere a descrever os resultados dos grahas nos signos, os clássicos usam de uma abordagem muito simples: se o graha ocupa um signo regido por um krūra-graha (maléfico), seus resultados serão maléficos, ao passo que se ele ocupa um signo regido por um saumya-graha (benéfico), seus resultados serão positivos. Os posicionamentos por casa também seguem a mesma ideia. Essa é uma lógica bem preto e branco. Na verdade, podemos dizer sim que é simplista, sem dúvida alguma, mas ela é absolutamente necessária para o aprendizado. Porque? Porque você precisa primeiro ter uma clara noção dos fundamentos e de seus contrastes: há elementos krūra (crueis ou severos) e saumya (benéficos ou agradáveis), da mesma forma que há grahas masculinos e femininos. Sem saber isso, você não teria como interpretar um mapa apropriadamente, pois faltariam referências básicas. No entanto, isso não quer dizer que entre o preto e o branco não podemos ter vários tons de cinza, e os śāstras esperam que você descubra isso por conta própria, afinal, isso só depende de um pouco de senso comum e lógica.

Suponhamos que alguém tenha Guru (Júpiter) em escorpião. A descrição clássica para esse posicionamento é de que o indivíduo será orgulhoso, aflito por doenças, sofrerá perturbações, será feroz, ostentoso, dado a realizar atos desdenhosos, se mostrará vil, enganador, arrogante, hipócrita, terá filhos que se revoltarão contra o mesmo, etc. Claro que entre esses muitos defeitos, há também qualidades mencionadas, como valentia, capacidade de liderança, habilidade, conhecimento dos śāstras (escrituras), benefícios por parte de amigos poderosos, etc. Porém, a simples razão de se enfatizar os defeitos é de que Guru, um saumya-graha (benéfico), está ocupando um krūra-rāśi (signo áspero/cruel), logo, sua natureza saumya será prejudicada pelas qualidades ásperas do signo de escorpião, cujo regente é Maṅgala (Marte). Lógico, não? Portanto, enfatizar as qualidades seria desonesto para com o que a configuração significa, a um grosso modo.

Mas, vamos supor que Guru esteja cercado por saumya-grahas (benéficos), em uma casa auspiciosa e ocupando o seu navāṁśa de exaltação, enquanto Maṅgala está bem situado e sob boas influências. Que resultados isso geraria? Possivelmente tornaria o indivíduo um líder audacioso, que sabe se afirmar, é persuasivo, resiliente, exitoso, sábio, versado, profundamente determinado, franco, incisivo, temível, mas não necessariamente cruel, pecaminoso e hipócrita. Porém, é óbvio que em uma condição como essa, já não estamos mais falando sobre Guru isolado em escorpião, pois relacionamos vários outros fatores que o śāstra em si também ensina, mas isoladamente. Porque? Porque a síntese fica por sua conta! Você é quem deve investigar isso a fundo. É impossível descrever a totalidade de um horóscopo em um livro, o que dizer então de fazê-lo em um mero verso? Ainda assim, vemos que os autores clássicos em duas linhas são muito mais peritos em atribuir adjetivos e prever resultados para um posicionamento/configuração do que os astrólogos de hoje em dia, que com textos quilométricos acabam usando de afirmações clichês, isso quando essas não são também vagas, subjetivas ou eufemistas.

Os textos de jyotiṣa não vão nos dar descrições elaboradas como a de Guru em escorpião na casa oito sob olhar de Śukra (Vênus), enquanto o seu dispositor está na seis combusto. O que ele vai nos dar é a descrição separada da natureza de Guru, os resultados de Guru em cada signo, em cada casa, as conjunções de Guru com outros grahas, etc., e tudo sempre com contrastes bem claros, para que então possamos sintetizar os resultados, que são sempre ímpares entre um caso e outro. Raramente uma configuração é absolutamente negativa ou positiva, a maior parte dos resultados de um posicionamento, yoga, etc., são mistos.

Mas o que eu concluí por experiência pessoal é de que, infelizmente, dado o estado atual da sociedade, muitos querem tudo mastigado, pois vivemos em uma era de consumismo voraz combinado a um pensamento raso. Inclusive, muitas pessoas nem sequer leem livros mais, isso inclui até mesmo muitos astrólogos, que hoje já não querem mais se debruçar demoradamente sobre os clássicos, os quais consideram antiquados. Na verdade, boa parte lê superficialmente um śāstra, pula vários capítulos, combina isso com o que vê na internet ou lê de um astrólogo contemporâneo que é popular (mas não necessariamente versado), pega alguns poucos exemplos, quando não o próprio mapa, e pronto, isso é suficiente para escrever um artigo ou gravar um vídeo. Isso reflete uma falta de rigor intelectual. A meta, nesse caso, não é entender as coisas e compartilhar do conhecimento, mas sim ganhar likes/popularidade e atrair clientes.

A nossa cultura atual é estruturalmente anti-tradicional/individualista, o que nos inclina a pensar que tudo o que foi dito no passado é retrógrado e ineficaz para os tempos atuais, quando na verdade nós é estamos em muitos pontos bem atrasadas para os autores do passado. Inclusive, há muitas pessoas que nem sequer sabem como se aproximar dos śāstras da maneira adequada, seja por falta de instrução ou mesmo de qualificação. 

Outra coisa que noto é que quando alguém trava contato com os śāstras de jyotiṣa, em virtude das afirmações diretas e incisivas desses, a reação acaba sendo de desconforto e aversão. Isso porque em nossos tempos atuais o narcisismo e o eufemismo são muito grandes. Desde os tempos do iluminismo os homens passaram a ser cultuados como o centro do mundo, e disso brotaram várias percepções anti-tradicionais e individualistas, ao ponto de hoje, por meio de redes sociais e coisas do tipo, todos terem se tornado estrelas, referência intelectual e assim por diante. Mas na época em que os principais jyotiṣa-śāstras e mesmo outros textos de astrologia, não necessariamente indiana, foram compostos, as coisas eram bem diferentes. Tudo era visto à luz da tradição, a coletividade era muito mais enfatizada do que a individualidade e não só Deus era central como também os mestres das diferentes disciplinas. 

Hoje, se uma pessoa lê um śloka clássico a descrevendo de forma negativa, ela pode acabar tomando aquilo como uma afirmação falsa, moralista e/ou retrógrada, quando na verdade, o que lhe falta é capacidade de introspecção e honestidade para perceber que há sim nela aqueles aspectos negativos ou, então nem sequer é o caso dela ser daquela forma, mas sim de carecer da capacidade de síntese e análise necessária para interpretar os ślokas clássicos em conjunto, ao invés de toma-los isoladamente e como se fossem afirmações absolutas. Portanto, a minha mensagem aqui é: não ache que um elemento isolado é absoluto nem tente relativiza-lo ao ponto de lhe descaracterizar, afinal, se as coisas ruins existem, onde elas podem estar representadas?

oṁ tat sat

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