quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Dīptāṁśa: as teorias das orbes

Os dṛṣṭis, traduzidos como "olhares", são os aspectos da astrologia indiana. Eles não diferem tanto dos aspectos da astrologia ocidental (helenística, perso-árabe, europeia, etc.), exceto pelo fato de que são atribuídas forças específicas a cada tipo de dṛṣṭi, ao passo que sua irmã astrológica não faz distinções claras ou matemáticas entre um aspecto e outro.

Trígonos, sextis, quadraturas e oposições são vistos na astrologia ocidental como aspectos de diferentes qualidades e intensidades, certamente, mas não ao ponto de se determinar que um trígono tem 50% de influência, um sextil 25%, etc., como faz o jyotiṣa.

Varāhamihira, por exemplo, cita que todos os grahas olham a sete a partir deles com 100% de influência, a quatro e a oito com 75%, cinco e nove com 50%, três e dez com 25%. As exceções, no caso, são Maṅgala (Mar), Guru (Jup) e Śani (Sat), onde Maṅgala também olha a quatro e a oito com 100% de influência, Guru faz o mesmo com a cinco e a nove, enquanto Śani, com a três e a dez.

Os nomes que são dados a esses dṛṣṭis de diferentes influências é pūrṇa (100%), tripada (75%), dvipada (50%) e ekapada (25%). Inclusive, a questão das orbes (dīptāṁśa) de influência de um dṛṣṭi, determinadas a partir da distância longitudinal entre o graha que lança o dṛṣṭi (draṣṭa) e aquele que o recebe, não foram explicitadas na maior parte dos textos clássicos. Varāhamihira, Kalyāna, Mantreśvara, Vyankateśa, Vaidyanātha, etc., não mencionaram as orbes de influência dos dṛṣṭis. Em virtude disso, muitos astrólogos tomam os dṛṣṭis baseados em signos inteiros. Ou seja, independente do grau ocupado por Guru, por exemplo, seus dṛṣṭis de 100% de influência abrangerão todo o quinto, sétimo e nono signo a partir do mesmo e o que quer que esteja ali.

Em meados do século VII-XI, no entanto, veio a surgir uma outra teoria, na qual os dṛṣṭis não seriam baseados em divisões de signos inteiros, mas sim em distâncias longitudinais. Eu cheguei a mencionar isso em um artigo anterior, o qual pode ser acessado clicando aqui. Essa teoria é denominada graha-sphuṭa-dṛṣṭi, onde sphuṭa se refere justamente as orbes agora incluídas nos dṛṣṭis e que os diferem dos graha-dṛṣṭis baseados em signos inteiros. Encontramos os graha-sphuṭa-dṛṣṭis citados no Jātaka karma paddhati de Śrīpati (XI) e também no Bṛhat Parāśara horā moderno, o que não necessariamente estabelece que a técnica já existia na versão mais antiga desse texto. O graha-sphuṭa-dṛṣṭi também foi mencionado por alguns astrólogos posteriores a Śrīpati que ou comentaram o tratado desse ou simplesmente seguiram o seu paddhati (sistema). Porém, não estou escrevendo esse artigo para incentivar o uso dos graha-sphuṭa-dṛṣṭis de Śrīpati. Na verdade, sou a favor sim de se usar orbes para os aspectos, mas não estou tão certo quanto a precisão da teoria de Śrīpati, pois as orbes atribuídas aos dṛṣṭis em seu sistema são completamente irregulares. Maṅgala, por exemplo, olha tudo o que estiver entre 180º e 210º a partir do mesmo com 100% de influência, o que é absurdo. Pior ainda, se consideramos os olhares de 75%, então a extensão do dṛṣṭi de Maṅgala vai de 173º à até 225º de sua posição natal com uma variação de 75% à 100% de influência, o que é ilógico na minha opinião e não corresponde ao que vemos na prática. Por algum tempo eu aderi a essa teoria dos dṛṣṭis, mas hoje já não confio mais na mesma.

Diferentes teorias
Fora a teoria de Śrīpati, no período clássico, medieval e renascentista, vários astrólogos, que não indianos, desenvolveram diferentes visões à respeito do tema. Por exemplo, Vettius Valens, que era do século II, tomava em geral os aspectos por signos inteiros. Digo "em geral", porque ele também considerava os chamados "aspectos dissociados", que se efetuavam por longitude e não por signo. Isso se dá, por exemplo, no caso de um graha que ocupa 29º de libra e outro situado a 1º de touro, que embora estejam em signos que não correspondem à oposição, a orbe dos mesmos equivale a esse aspecto, pois há uma distância de 181º do graha em libra ao graha em touro. Isso mostra que Vettius Valens não ignorava por completo as longitudes, como também ocorre com Antiochus (II d.C.), que tomava uma orbe de 3º para que um verdadeiro contato se desse, em termos de aspectos. 

Outros astrólogos, como Firmicus Maternus, Abraham Ibn Ezra, al-Biruni, etc., também fizeram uso das orbes, desenvolvendo diferentes teorias à respeito ou simplesmente as mencionado em seus textos, baseado em teorias que conheciam. O que se concluí, por um estudo dessas teorias, é de que muito provavelmente elas se desenvolveram a partir de uma tentativa de registrar a obscuridade heliacal dos grahas, ou seja, a extensão em que permaneciam obscurecidos por Sūrya (Sol), i.e., combustos. Isso naturalmente gerou valores distintos entre um astrólogo e outro, pois a extensão de graus na qual um graha permanece combusto não depende apenas da relação entre o graha e Sūrya, mas também de fatores atmosféricos, etc., que geram pequenas variações de graus. No caso, a orbe de um aspecto, incluindo aí as conjunções, seria a metade do valor indicado pela obscuridade do graha, com seu valor variando também entre um autor e outro.

Posterior a isso, no século XVII, o astrólogo francês, Claude Dariot, desenvolveu a teoria das moitiés ("metades" em francês), onde a metade das orbes tradicionais (mencionados por al-Biruni) de 15º, 12º, 7º, 7º, 8º, 9º e 9º de Sūrya, Chandra, Budha, Śukra, Maṅgala, Guru e Śani eram somadas entre grahas que estabeleciam uma relação específica por conjunção ou aspecto. Se a orbe do aspecto ou conjunção indicada não ultrapassasse a da soma das duas moitiés, então se poderia considerar que tais grahas estariam formando aquele aspecto ou conjunção em questão.

Um exemplo pode nos ajudar a entender melhor isso: a orbe tradicional de Guru é de 9º, enquanto a de Sūrya é de 15º, logo a moitié desses é de 4º30' e 7º30', respectivamente. Somando essas duas moitiés obtemos o valor de 12º00' que é a orbe máxima para que um aspecto ou conjunção entre Sūrya e Guru se efetive. Qualquer orbe superior a essa tornaria a relação ineficaz. Abaixo apresento, inclusive, as orbes propostas por Dariot:

Distâncias nas quais os grahas mantém-se em orbe uns com os outros 
Sūrya
Chandra
Budha
Śukra
Maṅgala
Guru
Śani
Sūrya
13½°
11°
11°
11½°
12°
12°
Chandra
13½°
9½°
9½°
10°
10½°
10½°
Budha
11°
9½°
7½°
Śukra
11°
9½°
7½°
Maṅgala
11½°
10°
7½°
7½°
8½°
8½°
Guru
12°
10½°
8½°
Śani
12°
10½°
8½°
Esse sistema de moitiés de Claude Dariot tornou-se muito popular e o método padrão entre os astrólogos da Europa renascentista. Seu sistema só veio a perder influência com o advento da astrologia moderna no século XX, a qual propõem orbes fixas de acordo com os aspectos, ou seja, um método simplificado e que ignora que certos grahas coerentemente detém mais influência que outros.
Mas, enfim, o que quero dizer com isso tudo é o seguinte: se observamos as orbes de Dariot, podemos perceber que elas variam entre 7º e 13º30', nem menos nem mais que isso, o que permite estabelecer 10º como sendo o valor médio das orbes - o equivalente a um drekkāṇa (decanato). E uma vez que não há concordância unânime entre os astrólogos tanto ocidentais quanto indianos quanto ao tema, minha opinião a respeito é de que qualquer tentativa de estabelecer uma orbe absolutamente precisa está fadada ao fracasso ou no mínimo a permanecer duvidosa em algum grau, pois o máximo que podemos obter são valores médios, sem precisar se apegar demasiadamente a eles. 
Por exemplo, Kālīdāsa, um astrólogo do sul da Índia que viveu provavelmente entre os séculos XVI e XVII, compôs um tratado chamado Uttara kalāmṛta no qual ele faz menção a orbes de 12º como padrão para todos os grahas, o que corresponde exatamente a orbe tradicional de Chandra. Essa é uma visão que parece ter exercido alguma influência entre astrólogos do período medieval e posterior. Inclusive, alguns astrólogos usavam uma orbe de 15º, que é justamente a orbe tradicional atribuída a Sūrya. 
Minha conclusão, portanto, é de que se utilizamos uma orbe média de 10º para todos os tarā grahas (Maṅgala, Budha, Guru, Śukra e Śani), uma de 12º para Chandra e de 15º para Sūrya, isso já é aceitável. Quanto a utilizar os valores específicos de Dariot ou os de Lilly (um pouco distintos dos de Dariot), não vejo problema algum. Inclusive, pode-se usar tais orbes para um estudo mais específico, enquanto as orbes médias podem ser utilizadas como um método geral, pois no final das contas, a tentativa de matematizar as técnicas astrológicas estará sempre fadada a algum grau de imprecisão, visto que a astrologia é predominantemente um conhecimento simbólico, ainda que dependa da matemática para o levantamento dos dados a serem interpretados.  
Imagino que algumas pessoas podem se mostrar resistentes ao que estou descrevendo aqui, pois qualquer tipo de comparação das técnicas indianas e ocidentais parece mexer com a cabeça dos mais rijos. Porém, vale lembrar que separar completamente as tradições indiana e ocidental de astrologia, como se essas fossem incomunicáveis entre si é uma atitude demasiadamente radical e diria mais, bastante mesquinha. Digo isso porque no passado houveram muitos intercâmbios entre indianos, persas, árabes, gregos, etc., o que fica provado por um estudo comparativo dos textos em linha histórica, como por exemplo o que citei aqui sobre Kālīdāsa ou mesmo o fato de que a mesma época em que os graha-sphuṭa-dṛṣṭis se desenvolveram corresponde ao período em que astrólogos ocidentais também estavam preocupados em matematizar muitas de suas técnicas. Logo, acho bastante válido não só em relação as teorias dos aspectos e suas orbes como também em relação a outros conceitos realizar esse tipo de estudo comparativo. Inclusive, muitos dos saltos que dei em termos de compreensão só vieram a ocorrer graças a esse tipo de "ousadia" e vejo que grandes autoridades no tema também não hesitaram em fazer o mesmo.  
A astrologia sempre foi um objeto de estudo compartilhado e, embora cada tradição tenha desenvolvido suas próprias respostas para diferentes problemas, isso não as isola de qualquer tipo de comparação ou teste para averiguar o que seria mais razoável e preciso. Nem todas as verdades astrológicas são de pedra, pois inclusive há muitos conceitos que são apenas teóricos, não se tratando de constatações irrefutáveis. 
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Referência:

oṁ tat sat

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