domingo, 27 de agosto de 2017

Os fantasmas dentro da perspectiva do Jyotiṣa

Nṛsīmha, divindade que afasta fantasmas
Os espíritos/fantasmas são comuns em todas as culturas, inclusive na indiana. Nela, eles são chamados de bhūtas. Um bhūta é um ser que, após a morte, não conseguiu transmigrar para um plano superior ou inferior[1] e muito menos reencarnar ou alcançar mokṣa (a libertação).

As razões que levam um ser a assumir a forma de um bhūta são basicamente morte violenta e traumática, questões que ficaram mal resolvidas ao longo do período em que estava encarnado (e que o mantém apegado a esse mundo) ou a negligência de seus parentes em realizar as suas cerimônias de passagem, chamadas de śraddhā[2].

Uma vez que permanecem apegados a esse mundo, mas destituídos de uma forma física, os bhūtas acabam assombrando lugares e pessoas, geralmente porque querem se vingar de alguém, alcançar seus desejos mal resolvidos, satisfazer anseios sexuais, causar danos a outros, sugar aqueles que possuem uma vibração positiva mas que ainda são imaturos e desprotegidos, controlar e induzir pessoas que tem uma propensão maior a ira e outros sentimentos negativos ou aproximar-se de pessoas a quem mantém vínculos ou que possuem vibração semelhante, ou seja, que estão sob a influência de tamas[3] (a obscuridade), como alcoólatras, drogados, assíduos comedores de carne e pessoas inertes, de mentalidade torpe e obscura.

Yogas (combinações) que geram perturbações espirituais
O vento possui existência, mas é destituído de forma, tal qual os espíritos. Devido a isso, Śani e Rāhu, os dois grahas que controlam os ventos (vāyu tattva), são relacionados nos clássicos a espíritos desencarnados. Além disso, Gulika e Ketu também guardam relação com espíritos, logo, todos os yogas que causam problemas com esses envolverão tais grahas.

No Sarvārtha chintāmaṇi, por exemplo, é mencionado que Rāhu e Shani relacionados ao lagna geram problemas com fantasmas. Essa configuração, no entanto, não precisa ocupar o lagna para que tais tormentas ocorram. Em seu Upadeśa sūtra, Jaimini diz que Śani junto a Rāhu ou Ketu sem a influência de um benéfico indica que a cerimônia de śraddhā do pai ou da mãe não será realizada pelo indivíduo, o que implica, de acordo com a cultura védica, em tais parentes tornarem-se bhūtas (fantasmas) após a morte, caso não tenham conhecimento e maturidade espiritual suficiente. No caso, se Śani junto a Rāhu ou Ketu ocupa o hemisfério visível do céu, então a cerimônia de śraddhā do pai não será realizada, ao passo que no hemisfério invisível, a da mãe é que não será realizada, no entanto, é muito possível que tal yoga se estenda não só ao pai e a mãe, mas também as famílias desses.

Outras citações aos bhūtas que encontramos nos clássicos são de Mantreśvara, na Phaladīpikā. Ele diz que Śani, Rāhu ou Gulika relacionados as casas seis, oito, doze ou seus regentes pode para causar problemas com espíritos. Ketu na cinco, de acordo com ele, também gera perturbações causadas por bhūtas.

No Praśna marga, de Harihara, é dito que Gulika ocupando o bādhaka sthāna[4] também indicará os mesmos problemas. Ele inclusive define as características da morte de tal espírito baseando-se no rāśi (signo) e navāṁśa ocupado por Gulika.

Sintomas de alguém que vive atormentado por bhūtas
Pessoas atormentadas por bhūtas estão em maior ou menor grau sob a influência de tamas, ou seja, a obscuridade. Os sintomas característicos de alguém em tamas são tolice, torpor, preguiça, lamentação, inércia, ilusão, ira, violência, sono excessivo, falsas esperanças, depressão, instabilidade mental, inveja, materialismo, dependências doentias (de pessoas, coisas, drogas, medicamentos, etc.), aversão a brāhmaṇas e sādhus, negligência em relação ao dharma, etc.

Os śāstras afirmam que pessoas em tamas prejudicam a si mesmas e aos demais, além de estarem sujeitas a degradação contínua ao longo de suas encarnações seguintes, ou seja, podem tanto ampliar sua situação de sofrimento na forma humana, como transmigrar para espécies de vida inferiores, como a dos animais, por exemplo. A consciência de tais pessoas é comparada a de alguém que vive um sono profundo, ou seja, estão em um estado de profunda ignorância.

Para quem quiser entender melhor os sintomas de tamas, recomendo que estude o cp. 25, do décimo primeiro canto do Śrīmad Bhāgavatam[5], assim como o cp. 14, 16 e os versos 19-48 do cp. 18 da Bhagavad gītā[6]. Inclusive, é bom salientar que tamas está presente em todos nós, o que difere, nesse caso, são as proporções de influência desse gua. Por exemplo, todos dormem e dormir é tamas, mas uns dormem o suficiente, outros dormem mais que o necessário e outros dormem menos que o necessário.

Upāyas (remédios)
Uma vez que os sintomas característicos de tamas e das perturbações por bhūtas foram determinados (mesmo que não em sua completude), se o indivíduo deseja de fato curar-se de tal condição doentia, é essencial que em primeiro lugar reveja os seus hábitos, pois um bhūta só perturba quem vive na mesma vibração que ele - ou seja, é um reflexo externo de uma condição interna, o que não deixa espaço para qualquer vitimismo ou projeção do problema como algo alheio ao indivíduoDe nada adiantará realizar um mantra ou qualquer prática, se depois o indivíduo retomar os seus maus hábitos, sem considerar que o mantra ou prática visa libertá-lo disso e não atuar como uma medida temporária, só para aliviar a sua consciência até o momento em que imerge de novo em seu estilo de vida obscuro.

Se um indivíduo praticar continuamente os upāyas que recomendarei aqui, é certo que perceberá progresso, mas isso depende de seu constante esforço em não só praticar tais medidas, mas também em afastar-se de tudo aquilo que evoca tamas. Portanto, há injunções positivas que devem ser praticadas (pravṛtti) e as negativas, que devem ser evitadas (nivṛtti). Somente pela prática de ambas bons resultados serão alcançados, uma vez que simplesmente negar certas coisas não será suficiente, pois o gosto por elas não mudará, mas será apenas reprimido. Similarmente, apenas seguir as injunções positivas, sem levar em consideração o que deve ser evitado será infrutífero, uma vez que qualquer progresso feito pela prática será destruído em seguida pela negligência ante ao que deve ser evitado.

A condição tamasica, que é onde as perturbações mais funestas se dão, só pode ser superada pelo que o āyurveda chama de sattvāvajaya, ou o fortalecimento da mente e do caráter por meio do cultivo de auto controle. Isso envolve, basicamente, fortalecer a qualidade de sattva (bondade, equilíbrio e pureza), o guṇa que reside entre tamas e rajas (paixão), e que nos leva a experimentar a saúde nos seus três níveis: físico, mental e espiritual. Um indivíduo em que sattva é predominante vive situado em conhecimento e felicidade, pois não se deixa desequilibrar pela avidez mundana de rajas e nem pela inércia obscura de tamas.

O cultivo de sattva, portanto, só é possível quando mantemos alguma disciplina a nível físico, mental, verbal, intelectual e também espiritual. Abaixo apresento as medidas a serem adotadas em relação a cada um desses níveis:

·    Nível físico: comer, dormir e ter atividade sexual regulada são essenciais para manter o equilíbrio a um nível físico, uma vez que esses são os três pilares que sustentam o corpo. Se alguém não regula essas atividades, é arrastado por elas ao ponto de tornar-se doentiamente dependente. P. e., em relação a alimentação, deve-se evitar alimentos preparados mais de três horas antes de serem ingeridos, rejeitar alimentos insípidos, decompostos e putrefatos, assim como alimentos que são obtidos por se causar sofrimento desnecessário a outros seres (por isso o consumo de carne é rejeitado no yoga). Deve-se, ao invés disso, valer-se de uma alimentação saudável, que promove força e satisfação, ou seja, baseada principalmente em legumes, frutas, verduras, cereais, grãos e laticínios puros. Uma atitude importante a ser cultivada em relação a alimentação é a de, em prece, oferecer o alimento a Bhagavān (Deus) antes da refeição, o que nos faz olhar o alimento não como um simples objeto de nossa exploração, mas sim como um elemento sagrado que visa manter o corpo e a alma unidos. Além disso, quanto ao corpo, é essencial manter-se sempre limpo, banhando-se logo ao acordar (esse hábito é muito elogiado nas escrituras). A higiene em relação ao ambiente onde reside é também muito importante, pois onde há sujeira e desleixo, há fantasmas. Práticas regulares de exercícios físicos, caminhadas, yoga, tai chi, etc., são igualmente importantes no que tange o corpo.

Em relação ao sono, não se deve dormir mais que 5-8 horas diariamente. Também não se deve ficar até tarde da noite acordado. O ideal é ir dormir antes das 22hrs e levantar-se antes do raiar do dia. Dormir após as 22hrs vai se tornando cada vez pior conforme as horas vão passando e o mesmo se aplica a acordar após o raiar do dia. Também não é recomendável dormir durante o dia, pois tudo isso aumenta tamas.

Por fim, quanto a atividade sexual, deve-se rejeitar atividade irresponsável, ou seja, sexo sem compromisso e regulação, assim como sexo violento, promiscuidade e pornografia, pois é alimento para os bhūtas. Os kāma-śāstras, assim como os ensinamentos taoístas (chamados de kung fu sexual) a respeito da sexualidade são recomendáveis para aqueles que não são capazes ainda de sublimar sua energia sexual por meio de atividades espirituais, uma vez que ajudam o indivíduo a vivenciar sua sexualidade de maneira equilibrada e construtiva, ao invés de destrutiva.  

·  Nível mental: psicoterapia, tal como o sattvāvajaya, ou outras terapias psicológicas, não necessariamente vinculadas ao āyurveda, podem ajudar o indivíduo a conhecer melhor as suas próprias armadilhas mentais e desfazer confusões, equívocos, etc. Além disso, prāṇāyāmas e mantras também podem ser incorporados, uma vez que incidem diretamente sobre a mente. No entanto, é essencial buscar a guia de alguém experiente nessas práticas, especialmente no que diz respeito a prática de prāṇāyāma.

Contemplar coisas mórbidas, assistir filmes de terror, cenas violentas, etc., só aumenta a influência de tamas sobre a mente, portanto, tais coisas devem ser rejeitadas. O uso de drogas (qualquer uma) e outros intoxicantes também aumenta a influência de tamas sobre a mente, tendo o poder de bloquear o ajña chakra (o chakra frontal, que reside entre as sobrancelhas). Outra coisa são as companhias, pois como diz o ditado "diga-me com quem andas e te direi quem és!". Se vive em meio a pessoas tamasicas, certamente se tornará tamasico. Não se deve cultivar uma relação de intimidade com pessoas desse nível, a recomendação é agir com indiferença caso tenham má índole ou ser compassivo caso sejam simplesmente ignorantes. Jamais se deve discriminar ser algum, pois no yoga aprendemos que não é o ser que deve ser rejeitado, mas sim os seus vícios. A gentileza é essencial!

·    Nível verbal: palavrões, fofoca, fala obscena, desagradável, lamentosa e crítica são típicas de pessoas influenciadas por tamas. Portanto, é necessário policiar a si mesmo, cultivando veracidade e entretendo a língua com coisas elevadas, ou seja, recitação de mantras e textos sagrados, conversas edificantes e que giram em torno de idéias e conceitos, ao invés de pessoas, etc. Cultivar o silêncio também é essencial, afinal, o silêncio é ouro!

·       Nível intelectual: intelectualmente, um indivíduo tamasico é inerte, ou seja, não tem o hábito de estudar, ler e pensar sobre conceitos, idéias e coisas que sejam edificantes. Sua consciência é obscura ou no máximo vive entretida em conhecimento de ordem materialista. No āyurveda, as terapias sattvāvajaya incluem, p. e., o estudo de textos como a Bhagavad gītā, que está repleta de conhecimento acerca da natureza do eu e de como funciona a natureza, o tempo, etc. O simples fato de ler ou ouvir a Bhagavad gītā já dispersa a inércia e a obscuridade de tamas do intelecto. Claro que se o indivíduo se sente mais confortável com ensinamentos de uma outra tradição, deve se dedicar a eles, embora a gītā não trate de conhecimento sectário.

·   Nível espiritual: a tradição védica é repleta de práticas espirituais que tem imenso poder de afastar tamas ou no mínimo diminuir tamas - o que nesse caso depende do praticante. Basicamente, o simples fato de ter disciplina em uma determinada prática espiritual é suficiente para gradualmente dissipar tamas, não sendo necessária nenhuma outra prática suplementar. No gaudiya vaiṣṇavismo, por exemplo, o simples ato de cantar os santos nomes de Hari é suficiente e isenta o indivíduo de qualquer necessidade de realizar cerimônias de śraddhā e outras práticas advindas do karma kāṇḍa. Porém, aqueles que sofrem com perturbações causadas por bhūtas e que manifestam os sintomas pronunciados de tamas, infelizmente não costumam ter fé na prática regular de uma disciplina espiritual. Portanto, se tiverem alguma sorte, poderão criar alguma fé e assim cultivar gradualmente uma determinada disciplina, que pode começar, nesse caso, pela recitação diária de um mantra a um ugra devata (divindade feroz), tal como Nṛsīmha ou Kālī. Eu particularmente recomendo nṛsīmha mantras, uma vez que Nṛsīmha é uma manifestação de Viṣṇu e, portanto, muito mais seguro, mas aqueles que se sentem inclinados a outras formas, podem adorá-las, desde que isso seja feito de acordo com as injunções tradicionais e sob a guia de um guru, pois caso contrário só atrairão mais problemas para si. 

A tradição também diz que uma das razões pelas quais um indivíduo é perturbado por bhūtas é, devido a insatisfação de seus ancestrais, portanto, a realização de tarpaṇa (certas oferendas aos ancestrais) em toda amāvāsyā (o último dia da quinzena lunar escura) é recomendado, assim como em pitṛ pakṣa, a quinzena lunar escura do mês de bhadrapada (geralmente, setembro) A prática de tarpaṇa é realizada junto da recitação do seguinte mantra:

पिता स्वर्गः पिता धर्मः पिता हि परमं तपः  
पितरि प्रीतिमापन्ने प्रीयन्ते सर्वदेवताः  

om pitā svargaḥ pitā dharmaḥ pitā hi paramaṁ tapaḥ   |
pitari prītimāpanne prīyante sarvadevatāḥ   ||

“Om, meus ancestrais são o meu paraíso. Meus ancestrais são o meu dharma. Meus ancestrais são a minha mais elevada austeridade. Meus ancestrais estão satisfeitos, todos os devas estão satisfeitos.“

Também se pode realizar uma cerimônia de śraddhā a um espírito perturbador que foi identificado. P. e., o espírito de seu pai, mãe ou qualquer outra pessoa que saiba quem é.

Outra recomendação do śāstra para afastar bhūtas é a recitação regular do rakṣoghna mantra (Ṛg veda, IV.4.1-5 ou Yajur veda I.2.14.1-5 ou Mahānārāyaṇa upaniṣad 27). No entanto, tais práticas não devem ser encorajadas entre aqueles que se dedicam ao cantar regular e devotado de Harināma (os nomes de Viṣṇu), pois Harināma é o abrigo último de todas os sacrifícios religiosos.

Agora que tantas práticas e hábitos foram apresentados, basta colocá-las em prática, seja porque sofre perturbações causadas por bhūtas ou simplesmente porque deseja diminuir a influência de tamas em sua vida, otimizando sattva. No entanto, tenha consciência de que nenhuma mudança se dará da noite para o dia, é necessário persistência. Não force demais, tentando incorporar tudo de uma vez. Respeite o seu tempo e vá mudando gradualmente.

Om tat sat



[1] Planos superiores e inferiores não se referem aqui ao paraíso eterno e nem mesmo ao inferno eterno, mas a planos temporários situados dentro desse mesmo universo, onde o indivíduo goza dos frutos de seu karma positivo ou negativo antes de reencarnar. Seres ímpios vão aos planos inferiores, chamados de patala e seres piedosos ascendem a svargaḥ e outros planos celestiais.
[2] Cerimônia onde se prestam homenagens aos parentes que partiram, logo após a morte dos mesmos e também em certos momentos do ano, como em amavasya (Lua nova) e em pitṛ-pakṣa (a quinzena lunar da fase escura do mês de setembro).
[3] Vide o artigo sobre guṇas: http://hora-sastra.blogspot.com.br/2014/12/como-determinar-o-guna-predominante-em.html
[4] Vide o artigo: http://hora-sastra.blogspot.com.br/2015/10/badhaka-casa-obstrutora-do-mapa.html
[5] https://www.vedabase.com/en/sb/11/25
[6] http://vedabase.com/pt-br/bg

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