sexta-feira, 29 de junho de 2018

Como os guṇas influenciam o dia

Inserido na filosofia védica estão os guṇas, conceito que divide a natureza em três qualidades básicas: rajas (paixão), sattva (bondade) e tamas (ignorância), as quais também se relacionam, respectivamente, aos processos de criação, manutenção e destruição de todas as coisas.

Tudo o que contemplamos tanto a um nível físico (sthūla) quanto sutil (sukṣma) está sob a influência dos guṇas, logo, desenvolver uma noção clara das características de cada um desses guṇas é importante para que possamos adquirir uma visão precisa das coisas. No jyotiṣa isso é absolutamente essencial, afinal, estamos estudando a natureza, seus ciclos e a influência que ela exerce sobre todos os seres vivos. Inclusive, um dos nomes dados a prakṛti, a natureza, é traiguṇya, ou seja, "que consiste de três guṇas".

Neste artigo vou me deter a explicar a relação dos guṇas com o dia, pois percebo que se um indivíduo se atentar a esse elemento, automaticamente ele vai aprender a discernir com muito mais clareza como os guṇas operam sobre a realidade e condicionam a sua própria percepção das coisas.

O dia possui vinte e quatro horas ou sessenta ghaṭikās[1], logo, se dividimos esse período por três, obtemos oito horas ou vinte ghaṭikās como resultado. Cada um do guṇas, portanto, exerce influência sobre oito horas no decorrer de um dia. O período rajas tem início as 10hrs. e prossegue até as 18hrs., o período tamas vai das 18hrs. as 2hrs, enquanto o período sattva tem início as 2hrs. e se encerra as 10hrs.

Essa, obviamente, é uma divisão aproximada e de natureza mais ampla, pois também é possível dividir a influência dos guṇas sobre um dia de maneira mais detalhada. P. e., é possível tomar o período rajas e o dividir em três seções: rajas, sattva e tamas. Porém, nunca vi alguém mencionar como essas divisões podem ser feitas. O mais próximo disso que encontrei nos śāstras é o conceito de velas mencionado no Jātaka pārījāta (9.123-125) de Vaidyanātha, em que o dia é dividido em dezesseis seções de 1h30m., seguindo a ordem de tamas, sattva e rajas.  No entanto, Vaidyanātha não menciona a sua referência e eu também não encontrei nada mais nos śāstras (de jyotiṣa ou não) que dê suporte ou mesmo negue essa visão.

Mas, retornando a divisão do dia em três fases, a começar por sattva, seu período tem início as 2hrs., no auge da madrugada. Entre 2-4hrs., sādhakas e sādhus se levantam para orar, meditar, cantar japa, estudar as escrituras e observar cerimônias. Eles diariamente se levantam da cama horas antes do nascer do sol, pois sabem que a influência sattvika é predominante nesse horário, o que se estende até as 10hrs. da manhã. Logo, idealmente todos devem se levantar assim que o período sattva se inicia ou ao menos antes do dia raiar, pois é nesse momento que devemos nos purificar tanto fisicamente quanto interiormente do tamas proveniente das horas de sono anteriores e assim se preparar para o rajas que está por vir durante o período diurno, conquistando assim a estabilidade e tranquilidade característica de sattva.

Encerrado o período sattva, por volta das 10hrs. se inicia o período rajas, em que o ímpeto passa a ser o de agir, de exteriorizar-se, em contraste com o período de reflexão e interiorização suscitado pelo período sattva. Portanto, se há um período ideal para se dedicar ao trabalho, a atividades sociais e tudo que demande mais movimento e ação, é entre 10-18hrs. Um indivíduo que se levanta por volta das 10hrs. da manhã, no entanto, não pode sequer usufruir apropriadamente do rajas desse período, pois ele já pula diretamente de tamas para rajas, sem antes purificar o seu corpo, mente e intelecto da maneira apropriada durante o período sattva. O resultado disso, geralmente, é a ineficácia da ação, a impureza do intelecto, da mente e dos desejos, o que consequentemente gera uma sensação de frustração e improdutividade no decorrer do dia, seja porque o indivíduo passou o dia lento (tamas) demais para conseguir tornar o seu dia produtivo, seja porque a ansiedade (rajas) tornou seus esforços dispersos e infrutíferos ou então porque, mesmo sendo exitoso em suas atividades, uma sensação de vazio segue o acompanhando - devido a extroversão excessiva característica de rajas, que nos subordina a demandas puramente mentais ao invés de espirituais.

Com o fim do período rajas, tamas começa a ganhar força a partir das 18hrs., o momento em que o sol geralmente está se pondo e, com ele, nossa disposição física e mental. Nessa fase do dia, com exceção dos animais noturnos, os demais se recolhem para descansar. Entretanto, para muitos humanos esse é o momento em que o dia realmente começa, afinal, geralmente esse é o fim do expediente de trabalho e, agora livre, o indivíduo pode usufruir do dinheiro que lutou arduamente para conquistar durante o período rajas. Os divertimentos então vão desde um simples passeio até os excessos da noite, ou então se resumem a desfrutar dos confortos do lar juntamente dos familiares ou da(o) parceira(o). Dessa forma, tamas exerce sua influência sobre a consciência dos seres, que acabam indo dormir tarde da noite ou mesmo da madrugada, para no dia seguinte pular mais uma vez o período sattva ou se levantar próximo do fim desse período.

Esse ciclo vicioso, em que o indivíduo permanece desperto apenas nas horas rajas e tamas do dia tornam sua consciência obtusa e ele acaba desenvolvendo os sintomas característicos de rajas e tamas, ou seja, apego e ignorância. No entanto, consciência clara só é possível em sattva e, tanto o yoga, quanto o jyotiṣa e o āyurveda recomendam levantar-se antes do raiar do dia, ao menos no brahma-muhūrta (os últimos 96min antes do nascer do sol). Inclusive, tradicionalmente, um jyotisaka (astrólogo) se levanta da cama antes do sol nascer e só realiza atendimentos enquanto o sol está visível no céu.

yā niśā sarva-bhūtānāṁ
tasyāṁ jāgarti saṁyamī
yasyāṁ jāgrati bhūtāni
sā niśā paśyato muneḥ

"O que é noite para todos os seres é a hora de despertar para o autocontrolado; e a hora de despertar para todos os seres é noite para o sábio introspectivo. (Bhagavad gītā, 2.69)"

oṁ tat sat



[1] Medida de tempo tradicional onde um ghaṭikā possui vinte e quatro minutos.

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