quarta-feira, 4 de março de 2015

Compreendendo Saturno

          Quando se fala de Saturno, aqueles que compreendem um pouco que seja da astrologia logo pensam na palavra karma. Alguns até dizem que Saturno é quem indica o nosso karma, num sentido pejorativo, o que não é muito apropriado de se dizer, pois o mapa todo compõe o nosso karma. Além do que, karma não é algo necessariamente ruim, pois trata-se de uma lei neutra que pode gerar tanto bons quanto maus frutos. Karma se traduz como atividade e não como fardo, embora seja natural que venha a se tornar um fardo pelo fato de que todos acabam se tornando cativos de seu próprio ciclo de atividades fruitivas, seja um milionário, um miserável, ou o que quer que seja. Portanto, para esclarecer o papel de Saturno e sua relação com o karma, estou escrevendo esse artigo. E para começar, considero que uma das melhores formas de entender Saturno é analisar as casas as quais ele é kāraka (significador), a 8 e a 12, pois isso nos ajudará a ir fundo em seu papel em uma carta natal.

As casas 8 e 12 tratam respectivamente da morte e das perdas, sendo definidas como dusthānas – locais de sofrimento, mas sofrimento com um propósito! Se analisarmos detidamente veremos que as casas 8 e 12 são parte do chamado mokṣa-trikoṇa, casas que, somadas a 4 compõem o triângulo de mokṣa, ou seja, que tratam da libertação do ciclo de nascimentos e mortes. No caso da 8, é a casa do conhecimento esotérico que é a raiz da libertação, e no caso da 12, a casa de śaraṇāgati, rendição, sacrifício completo que frutifica na libertação do saṃsāra. Portanto, isso qualifica essas casas como casas tanto de sofrimento, quanto de libertação, e Saturno é muito importante nesse processo todo.

           Saturno é o duḥkha-kāraka, significador das misérias e sofrimentos, assim como o ayu-kāraka, significador da longevidade. E o que é a longevidade senão o veículo de todas as misérias? Enquanto há vida, há quatro sofrimentos principais pelos quais devemos passar: nascimento, envelhecimento, doença e morte. O tempo de vida de um ser é o período em que ele tanto desfrutará quanto sofrerá os resultados de seu prārabdha-karma, que é o karma que amadureceu e representa agora a somatória de fatores que compõe a existência desse ser: seu corpo, a família em que nasce, as felicidades e tristezas pelas quais passa, etc. Basicamente, tudo que há para ser experimentado no intervalo entre o nascimento e a morte é definido como prārabdha – o que teve início, que se encontra em movimento -, e esse prārabdha é o karma que o astrólogo estuda na carta natal, e o qual Saturno é encarregado de ir trazendo a tona por meio de sua posição natal, aspectos, trânsitos, etc., embora isso não exclua o papel dos outros planetas como portadores do karma, pois em realidade quando falamos de karma, estamos a falar do mapa como um todo e não só de Saturno. Saturno seria basicamente o ceifador na plantação do karma. Ele sabe o momento certo para colher cada fruto. Por exemplo, quando Saturno aspecta a casa sete ou o regente da sete de um mapa durante o seu trânsito, o casamento pode vir a se tornar uma realidade, enquanto que quando ele se relaciona com a oito ou seu senhor, então esse pode ser o momento de um divórcio ou uma perda familiar.

Os planetas são os mediadores da lei do karma, eles nos conferem os frutos de nossas atividades pregressas, e dentre eles, Saturno é o ceifador que distribui os frutos das colheitas de vidas e vidas. Esse processo laborioso é chamado saṃsāra, o ciclo de nascimentos e mortes que pode ser comparado a esse grande plantio. Tal ciclo compreende transformações que não se dão somente ao longo de uma vida, mas ao longo de incontáveis vidas, um processo simplesmente inconcebível para nossa mente limitada e com uma referência de tempo tão insignificante perante o infinito. O ciclo do saṃsāra a que a alma encontra-se atada é definido como anadi, isso é, sem um começo perceptível. Mas qual seria afinal o propósito disso tudo? Porque nascer, porque sofrer, porque adoecer, envelhecer e morrer? Bem, esse é o preço que se paga para alcançar o infinito, “é preciso morrer para viver”, parafraseando o filósofo Hegel. É essa a exigência para aqueles que miram o infinito: precisa-se estar disposto a morrer, quantas vezes for necessário para alcançar a meta última, e quem confere a força para enfrentar essa dificil tarefa é Saturno, o resistente, vagaroso e sábio homem de idade, que traz consigo a experiência e o desapego.

Para a alma que encontra-se enredada o sofrimento lhe serve como um árduo guia, pelo menos até uma certa etapa de seu progresso. É como um vírus. Para ganhar imunidade, preparam-se vacinas valendo-se do próprio vírus, mas em uma quantidade muito inferior. Quando o vírus é introjetado no corpo, o sistema imunológico o combate e, ganha-se assim imunidade em relação ao mesmo. Da mesma forma, o sofrimento é preciso para que se compreenda a necessidade de transpor essas quatro causas de toda angústia: o nascimento, o envelhecimento, a doença e a morte. A energia externa chamada maya-śakti, é uma serva do Senhor encarregada de punir as almas entretidas em sua exploração nesse plano da nescidade, pois expondo a alma condicionada a diferentes tipos de dificuldades, pouco a pouco ela vai tomando conta da necessidade de transcender essa realidade, pois percebe que se encontra perdida em uma terra estrangeira.

Dentro do mapa, todo esse drama pode ser analisado, assim como as chances que uma pessoa tem de se libertar disso tudo, o que se dá através das casas 4, 8 e 12 basicamente. Essas casas compõem a chave para a libertação, e Saturno, sendo o kāraka das casas 8 e 12, é não só aquele que gera sofrimentos, como também o responsável por evocar o desapego. Devido a isso, Saturno pode ser qualificado como vairāgya-kāraka, o significador do desapego as coisas mundanas, o que inclui a própria concepção corpórea, que é a fonte de todas as misérias. Saturno alinha-se como kāraka das casas 8 e 12 tanto no encargo de punidor quanto de libertador.

Por exemplo, no capítulo 79 do BPHS, Parāśara trata dos pravrajyā-yogas - combinações que conduzem a renúncia, a dedicação a um processo espiritual -, nos quais podemos ver o quão fundamental é o papel de Saturno nessas combinações, conforme seguem abaixo:

(1)  O senhor do signo ocupado pela Lua aspecta ou, enfraquecido recebe o aspecto apenas de Saturno.

(2)  A Lua ocupa um decanato ou navāṁśa de Saturno ou Marte e recebe o olhar de Saturno.

(3)  Lua, Júpiter e o lagna (ascendente) recebem o aspecto de Saturno enquanto Júpiter ocupa a nona casa.

(4)  Saturno ocupa a nona sem receber o aspecto de qualquer planeta.

Todos os yogas acima citados conduzem a prática do yoga e, portanto ao desapego. Com isso em mente podemos entender que a faceta severa de Saturno tem o seu propósito específico: gerar o desapego, evocar a consciência de que nesse plano tudo é efêmero, está fadado a decair. Em sua expressão máxima, Saturno é a personificação do sábio, do homem que morreu para o mundo, como um sannyasi, ou mesmo um bābājī – duas classes de renunciados.


Hari Om Tat Sat

2 comentários:

  1. ah que bonito, lindo texto--- tenho essas coisas saturninas---saturno e desapego das ilusões--- tudo é impermanente"o que adianta granjear o mundo se perder sua alma?""

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  2. Gratidão pelo belo e esclarecedor texto.

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