quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Melapaka - a sinastria

A questão que mais interessa para as pessoas em geral, em uma consulta, é sobre a vida afetiva. Isso é algo que quem atende sabe bem. Nunca calculei a porcentagem de pessoas que pergunta sobre o assunto, mas imagino que passe dos 70%. Claro que as pessoas também possuem outras preocupações, mas sem dúvida, essa se destaca. Seres humanos são essencialmente gregários e enxergam propósito na vida quando podem servir e amar a algo, seja a família, a sociedade, ou, na sua expressão mais perfeita: a Deus. Sem servir e amar a algo, definhamos, e como vivemos no mundo da dualidade, somos inclinados a idealizar a perfeição do serviço e do amor em uma parceira, ou parceiro afetivo.

Logo, visando dar uma breve ideia de como no jyotiṣa o tema afetivo é analisado, decidi escrever esse artigo, que aborda melapaka, o que no ocidente chamamos de sinastria. Basicamente, na tradição indiana, o melapaka consite na análise de oito (aṣṭa) ou dez elementos (daśa kuta) que são todos baseados no nakṣatra ou no signo ocupado por Chandra (Lua) no mapa do casal. Essas considerações são rajjumahendragaṇa, etc., que avaliam coisas como harmonia, atração física, saúde, fortuna, etc., dentro do contexto da relação. Porém, essa análise é não só qualitativa como também quantitativa, já que ao final dela os pontos indicados por cada conjugação são somados para então saber se a relação é ou não recomendada.

Na Índia, esse método de aṣṭa/daśa kuta é bem respeitado e seguido. Muitos, inclusive, são dogmáticos quanto ao método e não aceitam nada mais além dele. Em termos de textos clássicos, o encontrei no Jātaka deśa mārga de Somayajī e também em um kāma śāstra, mas se não me falha a memória a origem dele é um outro texto que agora não me lembro o nome. De qualquer forma, partir apenas do aṣṭa/daśa kuta para determinar a compatibilidade de um casal não é nada prudente, já que há outras técnicas a serem empregadas, algo que, inclusive, foi abordado pelo Robert Svoboda e o Hart de Fouw no Light on relationships, livro que ambos escreveram juntos. Mesmo certos astrólogos indianos com quem travei contato deixaram claro que a sinastria vai muito além do aṣṭa/daśa kuta, algo que eu, na minha ínfima experiência, também concordo.

Matematizar técnicas de jyotiṣa soa muito tentador, já que resolveria com números um problema interpretativo e que pode facilmente descambar na subjetividade do interpretador. Mas como o jyotiṣa não é só matemática, pelo contrário, é muito mais simbólico, se faz necessário o uso de outras técnicas antes de se emitir qualquer julgamento sobre a compatibilidade de um casal.

Abaixo eu listo todos os conceitos que devem ser usados lado a lado com a análise de aṣṭa/daśa kuta:

Sobreposição de mapas: a sobreposição consiste em ver como os grahas (planetas) de ambos os mapas se relacionam. Desses, os mais importantes são Sūrya (Sol), Chandra (Lua), Śukra (Vênus), Mangala (Marte) e o lagna (ascendente). Apesar de não podermos ignorar também os outros grahas, que descreveriam coisas mais específicas, como a perspectiva religiosa, moral e filosófica de ambos pela análise comparativa das posições de Guru (Júpiter), por exemplo. Mas, de maneira geral, nessa análise de sobreposição, é necessário que hajam relações harmoniosas entre os grahas do casal. Por exemplo, é bom que Sūrya e Chandra de ambos estejam em angulações harmoniosas (1-3-5-7-9-11), das quais se destacam as relações de 1-5-7-9 (ex. se o Sūrya de um ocupa touro, então é bom que o Chandra da parceira ocupe touro, virgem, escorpião ou capricórnio, que são o primeiro, quinto, sétimo e nono signo a partir de touro, respectivamente). Uma relação harmoniosa entre Sūrya e Chandra é essencial para que haja amor e apreciação um do outro na relação, ao passo que a relação de Śukra e Mangala fala sobre a paixão e o apego que um nutre pelo outro, assim como o tipo de expectativa romântica/sexual. A disposição dos ascendentes e certas relações que os grahas estabelecem com o eixo 1-7 do mapa também são bem importantes.

Guṇa: a análise do guṇa predominante é uma recomendação de Parāśara, o qual diz que o casal idealmente deve ser de pessoas que possuem o mesmo guṇa (rajas - paixão, sattva – bondade, ou tamas - ignorância) predominante, isso é, se um é rajas (natureza apaixonada e ativa), o outro também deve ser rajas. Parāśara sustenta a visão de que se o homem tiver o guṇa superior ao da mulher, a relação ainda tem chances de ser harmoniosa, visto que o homem é por natureza mais inclinado a liderança e ao domínio, o que adquirirá traços positivos ou não a depender dos outros fatores envolvidos na interpretação. No entanto, é preferível que ambos possuam o mesmo guṇa e que não haja severas discrepâncias, como no caso de tamas e sattva, por exemplo, onde um é predominado pela inércia/ignorância (tamas) e o outro pela pureza/bondade (sattva), uma combinação problemática, visto a natureza antagônica de ambos os guṇas. Já combinações como sattva e rajas ou rajas e tamas ainda podem representar algum grau de harmonia e respeito na vida do casal. 

Doṣas: os doṣas (defeitos) como Maṅgala doṣa (o desequilíbrio causado por Marte), viṣa kanyā (literalmente: mulher envenenada) e outros que causam infertilidade, impotência, traição, divórcio ou viuvez precoce, obstruindo assim a satisfação na vida afetiva, idealmente não devem estar presentes nos horóscopos do casal. Quando eles se encontram presentes, minam as chances de felicidade afetiva total ou parcialmente. Isso traz a tona uma questão importantíssima: antes de realizar uma sinastria devemos analisar as próprias promessas afetivas do casal separadamente, pois nenhuma sinastria fará milagres se no mapa de alguém já estiver prometida a infelicidade na vida afetiva. Isso é como o que ocorre com muhūrta (eletiva), já que ninguém vai eleger um momento perfeito para iniciar um negócio se no seu próprio mapa não há promessas de sucesso nos negócios. O mapa individual (jātaka) é a matriz de todas as análises, seja sinastria, muhūrta, revolução solar, trânsito, etc. 

A análise individual: acima eu já citei a importância da análise individual, mas é necessário também pontuar o que isso envolveria. No caso, a primeira coisa é analisar a sétima casa, seu regente e, dentre os significadores possíveis, principalmente Śukra (Vênus). Secundariamente, também devemos analisar outras casas como a dois, quatro, oito e doze, por exemplo. Em termos de significadores, Guru (Júpiter) e Mangala (Marte) são importantes em mapas femininos, enquanto Chandra (Lua) também é um significador importante em mapas masculinos. Além disso, a análise da daśā e dos trânsitos é de suma importância, já que essas são as ferramentas usadas para prever a ativação dos eventos prometidos no mapa. Quando há ativações em comum nos mapas de um casal, isso, por exemplo, já justificaria a união, embora não determine necessariamente a compatibilidade ou duração da mesma, o que compete ao restante da análise. Outra coisa que as daśās ajudam a pontuar são os períodos de altos e baixos na vida afetiva, incluindo eventos como divórcio ou viuvez. 

Upapada & darapada: há dois pontos virtuais usados em Jaimini jyotiṣa que são muito úteis na determinação das promessas afetivas, o que se enquadra na análise individual acima citada. Esses pontos são o upapada e o darapada. Minha experiência pessoal com o uso desses dois pontos prova que eles facilitam em muito a análise do tema. 

Sāmudāyika-śāstra: sāmudāyika é o estudo do corpo. Parāśara ensina como analisar as mãos, pés, o cabelo, a testa, etc., de um indivíduo, o que seria útil na determinação das características pessoais e das próprias promessas afetivas. No caso, sāmudāyika inclui hasta-jyotiṣa, a quiromancia, uma ferramenta complementar ao jyotiṣa, além de também incluir mukha-jyotiṣa, o estudo da face, que também traz informações valiosas sobre a natureza de uma pessoa.

Como disse anteriormente, por simplesmente se basear no cálculo dos kutas não é possível realmente saber se há ou não compatibilidade entre um casal. Há muitos elementos a serem analisados. Nesse artigo eu apenas cito quais são esses elementos, mas sem entrar em maiores detalhes sobre como essas análises são feitas, que regras e exceções elas incluem, pois isso não é algo que dá para especificar em um artigo como esse, que visa ser breve.

Inclusive, não só as técnicas astrológicas são importantes para a análise de compatibilidade, como também conhecimentos específicos a essa área da vida, o que está detalhado nos kāma-śāstras, como o Ananga-ranga, o Ratirahasya e o Kāma-sūtra, textos que lidam com kāma-puruṣārtha (satisfação dos desejos), uma das quatro metas humanas, e cuja satisfação se encontra principalmente no casamento. Sem tomar por referência conhecimentos como esses, as chances de uma relação dar errado são bem maiores, já que não é porque a busca por kāma é algo instintivo que isso implica negligenciar qualquer tipo de educação a respeito do assunto. Inclusive, a educação é muito mais importante e eficaz do que ficar recitando mantras para isso ou aquilo, já que o mantra passará a ser especialmente eficaz apenas quando apoiado nas concepções e bases corretas, as quais ele visa justamente fortalecer. 

oṁ tat sat

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